“Acho que eu trabalho desde quando aprendi a ler”, diz Aline Deparis entre risadas, relembrando a época em que ia até o banco com seu pai para ajudar a firmar os contratos da fazenda da família. “Ele pedia para eu confirmar o valor da transação, a safra e o nome dos envolvidos. Claro que eu não lia as cláusulas, mas ajudava como podia.” Seu pai, italiano que teve muita dificuldade para aprender o português, precisava desse apoio para que o negócio funcionasse da melhor forma possível. Em Viadutos, uma pequena cidade de 4.000 habitantes no interior do Rio Grande do Sul, Aline aprendeu o que era responsabilidade.
“Eu viajava cerca de seis quilômetros todos os dias para ir à escola. Sempre a cavalo ou bicicleta. Era realmente um passeio, eu voltava para casa devagar, parando para colher frutas”, recorda. “Quando precisávamos ir ao banco para resolver algo, minha mãe já me avisava para chegar mais cedo. Com o passar do tempo, essa responsabilidade foi aumentando.” Hoje, Aline cuida de parte dos negócios junto a seu pai, mais especificamente de produções de soja e laranja. “É uma plantação singela, são poucos hectares, cerca de 40 mil quilos de laranja por ano”, conta.
Embora ainda tenha uma veia agro pulsante, a gaúcha não desenhou sua carreira no setor. Formada em administração de empresas pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), trilhou sua trajetória na área da tecnologia – um caminho completamente diferente, mas igualmente estereotipado como um ambiente masculino.
“Meu pai sempre diz que eu trabalho com computador. E ele está 100% correto”, diz, com bom humor. “Muita gente pergunta se eu me inspirei na minha família para investir em tech, e a resposta é não. Mas foi do meu pai que veio a garra empreendedora. Toda vez que ele colhia uma safra e não era muito bem-sucedido, dizia: ‘Ano que vem a gente planta de novo e vai dar tudo certo’. Na área de tecnologia, não é muito diferente.”
Aline, que já viveu fracassos e decepções em seus mais de dez anos de carreira, sabe bem que o mundo da tecnologia precisa ter a mesma perseverança. “Mesmo sem saber o ‘tecniquês’, meu pai me deixa ensinamentos.” Aos 24 anos, no último ano da faculdade, ela percebeu isso pela primeira vez. “Eu trabalhava em uma grande empresa do setor bancário no Rio Grande do Sul, até eles fazerem uma demissão em massa. Eu, claro, acabei sendo demitida.” Preocupada com a possibilidade de ficar desempregada após a formação, descobriu um projeto da PUC em parceria com a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos): um concurso de negócios, concorrendo a um investimento inicial de R$ 120 mil.
Para a então estudante, era a solução perfeita. Com afinidade com tecnologia e um grande amigo especialista em softwares, Aline teve a ideia de sua primeira empresa: a Maven Inventing Solutions, especializada em publicação digital de conteúdo. “Precisávamos de um plano de negócios e um software inovador para ganhar esse programa, então unimos as duas expertises. Mas eu ainda sei reiniciar um banco de dados”, brinca ela. A parceria foi um sucesso e a dupla venceu o concurso. Com menos de 25 anos, Aline abriu sua primeira empresa, que hoje atende plataformas como o Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro e o jornal “Folha de S.Paulo”. “Somos líderes em publicação digital. Atendemos diversos veículos ao redor de todo o Brasil, do Rio Grande do Sul à Amazônia.”
A primeira “safra” empreendedora de Aline foi extremamente bem-sucedida. Mas, seguindo a lógica do mundo agro, era preciso continuar plantando. Foi pensando nisso que a executiva, após alguns anos de estabilidade, decidiu mergulhar em mais um negócio próprio. Dessa vez, uma empresa de identidade digital utilizando a tecnologia blockchain.
AS SAFRAS DE ALINE
“Uma vez que a Maven se estabilizou no mercado, minha inquietude empreendedora começou a incomodar”, conta Aline. Em eventos e palestras do Gartner, empresa norte-americana de consultoria em tecnologia, a executiva começou a perceber a força do blockchain. No Brasil, o hype ainda estava restrito à moeda, enquanto no exterior o campo de oportunidade era muito maior. “Voltei ao Brasil focada em desenvolver uma tecnologia de identidade digital utilizando o blockchain. Com nosso aplicativo, batizado de Trubr, não seria mais preciso carregar RG, CPF ou carteira de motorista em papel”, explica.
No entanto, embora a ideia fosse um sucesso no papel, na prática as coisas não funcionaram tão bem assim. Aline preparou tudo com cuidado: visitou a Cripto Valley – região da Suíça conhecida por atrair empresas blockchain -, conseguiu um investimento de R$ 2 milhões de uma companhia suíça e desenvolveu o software do zero. O problema não estava no processo, mas sim em um detalhe que a empreendedora deixou passar: o Brasil não estava preparado para essa tecnologia. “Chegamos cedo para a festa”, destaca a executiva. Cinco anos atrás, ninguém falava sobre o assunto e o negócio precisou ser fechado após um ano e meio de tentativas.
“Nessa eu fracassei. E fracassei a 300 km/h”, brinca Aline. “Do dia para a noite, precisei encarar um dos maiores desafios da minha vida: encerrar as atividades com as expectativas de todo um time que estava trabalhando duro.” O software, no entanto, continua sendo utilizado pela empresa investidora da Suíça, onde a tecnologia é amplamente popularizada. “Embora a Trubr não tenha decolado aqui no Brasil, isso me ensinou muito. Como meu pai sempre diz, eu só precisava me recuperar e tentar novamente na próxima colheita.”
E não demorou muito para que Aline decidisse que era hora de levantar e arriscar novamente. “Quando estávamos pesquisando sobre blockchain, vimos que a lei de proteção de dados também era uma tendência. Já estava muito forte na Europa, então eu pensei: “Isso vai ser uma corrida no Brasil’. As empresas não estão preparadas para essa questão”, conta. “O brasileiro tem uma cultura diferente, nada focada em privacidade. Somos comunicativos e abertos demais.” Mesmo assim, a executiva sentia que esse comportamento estava para mudar em solo nacional.
Na ocasião, em vez de chegar cedo na festa, Aline foi pontual. Fundada em 2019, a Privacy Tools foi amplamente aceita e, atualmente, atende cerca de 180 clientes. “Na verdade, atendemos mais do que isso. Consideramos apenas um CNPJ, mas muitas vezes atendemos grupos gigantes”, explica a empreendedora. O sucesso, segundo Aline, conversa com o momento que o mundo está vivendo: a era da confiança. “Empresas têm acesso e manipulam nossos dados pessoais diariamente, isso nós sabemos. Mas, quando há um vazamento de dados, perdemos a confiança e elas, consequentemente, perdem clientes fiéis e credibilidade. Cada vez mais, as companhias precisam tratar com seriedade informações pessoais envolvidas.”
Em 2020, o tema ganhou ainda mais relevância com a regulamentação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) no Brasil. Com apenas um ano de história, a Privacy Tools cresceu e conquistou um aporte na casa de R$ 1 milhão – os contratos ainda estão sendo fechados, por isso a empreendedora prefere não entrar em detalhes. O que ela adianta é que a empresa investidora é brasileira. “É uma questão de sobrevivência saber cuidar dos dados dos clientes, então nós acertamos o momento de mergulhar nessa temática”, diz, com orgulho. “Muita gente compara a importância da confiabilidade com ouro, mas eu digo que é água. Ninguém sobrevive sem água.”
Com cerca de 55 funcionários em suas duas empresas de tecnologia, Aline vive o dia a dia de uma executiva de negócios. E, como se investir em tech e agro não fosse o bastante, ela, aos 34 anos, tem mais planos empreendedores em mente. “Agora estou comprando uma área nas Serras Gaúchas para montar uma pousada boutique. A ideia é proporcionar uma experiência de integração com a natureza, já que eu tive uma infância com todas as experiências possíveis: de dirigir trator a colher frutas do pé.” Na área de turismo, ela espera, finalmente, um ambiente com mais colegas mulheres.
“Eu fui a presidente mais jovem a representar a Assespro/RS (Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação). Já sentei na mesa de reunião e ouvi: ‘Moça, a presidente vai sentar aí’”, relembra. Jovem e mulher, a executiva busca mostrar que ideias e capacidades não podem ser subestimadas. “Quando sento em uma cadeira de liderança nesses setores majoritariamente masculinos, eu trago comigo todas as mulheres que não tiveram a mesma oportunidade que eu. Falo por mim e por elas”, finaliza.
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