Borgonha oferece uma verdadeira caça aos restaurantes cinco estrelas

22 de fevereiro de 2015

No dia 24 de fevereiro de 2003, a pequena cidade de Saulieu, na Borgonha, ouviu, surpresa, o estampido de uma arma de fogo. Bernard Loiseau, a personalidade mais destacada do município, acabava de dar fim à própria vida. A notícia repercutiu em toda a França, já que Loiseau fazia parte da restrita confraria dos melhores chefs de cozinha do país. E ganhou o mundo logo em seguida, quando se soube o motivo que levou Bernard ao suicídio: a especulação de alguns jornais sobre a possibilidade de Loiseau perder uma de suas três estrelas no Guia Michelin.

Houve comoção nacional, debates na imprensa, discussões sobre pressão profissional e emocional. O assunto rendeu vasto noticiário, livros e até serviu como base para o roteiro da animação Ratatouille, dos estúdios Pixar. Só não mudaram em nada a discrição e os critérios de avaliação da centenária lista de estrelas Michelin.

Pois é à caça delas que estou percorrendo o solo calcário da Borgonha, um departamento da França (aqui chamaríamos de estado) consagrado por seus vinhos raros e excepcionais e sua gastronomia refinada. A Borgonha, que é apenas um pouco maior do que Alagoas, deu, ao mundo, algumas notáveis contribuições gustativas: é daqui, por exemplo, a incomparável mostarda de Dijon, hoje redenominada Moutarde de Bourgogne. Os escargots, presentes em nove entre dez restaurantes franceses, também são criação local. Assim como o licor de Cassis, o Kir, os ovos escalfados, o boeuf bourguignon e o queijo Epoisses. O vinho Chablis assim se chama em razão da cidade homônima onde vicejam seus vinhedos. A linda cidade de Beaune é considerada a capital dos vinhos da Borgonha, feitos, sempre, à base de uvas pinot noir (os tintos) e chardonnay (os brancos).

Vê-se logo que o território de caça às estrelas não poderia ser melhor. Na verdade, o próprio Michelin informa que a Borgonha abriga 29 restaurantes que fazem parte de sua constelação. E viajar entre eles é, quase sempre, uma atividade aprazível, sobretudo para quem dispensar as autopistas. Pois é nas imediações das rotas vicinais que fica quase toda a alma da província: os vinhedos abertos à visitação, os monumentos históricos, os rios, lagos, bosques, montes, em geral trafegados por ciclistas ou casais primaveris em seus carros conversíveis. E é nessa vizinhança, também, que ficam alguns dos incomparáveis Relais & Chateaux.

Você já deve ter ouvido falar deles e, se for um bon vivant, é provável que já seja um hóspede frequente. Há 530 propriedades que merecem essa chancela, distribuídas por 60 países. A maior parte delas oferece hospedagem e gastronomia. Alguns se destacam apenas pela excelência de seus restaurantes. O que as destaca das demais, porém, é a presença e competência de seus anfitriões. Para ser um deles, é importante ter localização privilegiada, construções charmosas – ou de valor histórico –, serviço acolhedor e proprietários dispostos a oferecer um ambiente familiar. Bons restaurantes, com cozinha regional e produtos vindos do próprio terroir também são fundamentais. Mas o melhor de tudo é o fato de que eles não são apenas bons refúgios para caçadores de estrelas, mas, em muitos casos, para encontrá-las, basta perguntar ao funcionário mais próximo qual é o caminho até o restaurante.
Voilà!

Comecemos, pois, a recolher os troféus. Na Hostellerie de Lavernois, nas imediações de Beaune, porém, é fácil esquecer sua missão. Dentro de um parque arborizado de 50 mil metros quadrados, que tem, como anexo, um campo de golfe de 18 buracos, é imprescindível perder-se. O que também pode ocorrer em algumas de suas imensas suítes, com dependências anexas. Basta escurecer, entretanto, que o brilho da estrela de sua cozinha começa a chamar a atenção. Nesse caso, uma estrela apenas – mas, como já se viu, há quem se mate por ela.

Para o paladar de um leigo, os pratos do chef Phillipe Augé não têm como ser superados. Serviço harmônico e preciso. Apresentação ousada e apetitosa. Um sem conta de amuse-bouches de vanguarda. E pratos com nomes irresistíveis como Les coquilles Saint Jacques en bonbonnière, Ecrevisses et champignons, jus à l’Huile de pignon de pin (vieiras, lagostins e champignons, com suco ao óleo de pinhões). Se você pensou apenas em vieiras, esqueça. O resultado é muito melhor. Por definição, um jantar completo em um restaurante estrelado deve ser longo. Entre duas e três horas é o tempo desejável para que cada movimento seja apreciado de forma lenta e duradoura. Os vinhos harmonizados – e aqui estamos falando de vinhos da Borgonha –, também demandam seus momentos. Assim como os queijos, as sobremesas e os digestivos.
Pronto: uma estrela para a coleção.

A próxima virá em embalagem surpreendente: o Relais & Chateaux l’Abbaye de la Bussière é uma experiência quase mística. A abadia cisterciense do século 12 (1131), tinha monges residentes até há poucos anos. Adquirida pelo magnata inglês Clive Cummings, ela foi delicadamente restaurada. Colunas estreitas erguem-se até corredores abaixo dos arcos entalhados de sustentação. Magníficos vitrais parecem o convite para um madrigal. O jantar (uma prece), é a segunda estrela de minha caçada. E, de novo na estrada, talheres à mão. A próxima parada é uma entidade gastronômica quase centenária: o hotel e restaurante (Relais & Chateaux) Maison Lameloise, na pequena cidade de Chagny, citada por sua boa comida desde tempos medievais.

É tempo de encorpar minhas conquistas: um verdadeiro três estrelas, comandado pelo chef Éric Prass. Carnes de caça, langoustines ao molho de maçã verde, lebre ao estilo do rei, os pratos vão desfilando sensualmente à minha frente, embalados pelo slogan “Tradição é inovação”. Os vinhos, aveludados, fazem a refeição fluir até o último lampejo de sua constelação. E não há tempo a perder: há mais três estrelas no jantar e mais cinco no dia seguinte. Onze em apenas dois dias – o que deve ser uma espécie de recorde.

Em Joigny, o chef três estrelas do La Côte Saint Jacques & Spa, Jean-Michel Lorain, tem outros astros aguardando: o oeuf parfait et Truffe blanche d’Alba servis sur une crème de lentille vertes de Puy, mousse de Lard et de Persil (ovo perfeito e trufa branca de Alba, servidas sobre um creme de lentilhas verdes de Puy, espuma de bacon e salsinha) é apenas um deles. Constato, pesaroso, que não importa a quantidade da comida. Quanto melhor ela é, mais aumenta o apetite. Lorain, outra lenda da França, tem, também um dom especial: o de compartilhar sua arte. Ele adora contar como faz cada prato, fórmula, em geral, guardada a sete chaves por seus concorrentes. E eis que nasce um novo dia, agora na linda cidade de Vézelay, cuja basílica, no alto de uma colina, serviu de ponto de partida para duas cruzadas.

A terceira vem sendo empreendida diariamente a 2 quilômetros de distância, no Relaix & Chateaux L’ Ésperance de Marc Meneau. Espirituoso, carismático e midiático, Meneau já teve três estrelas por duas vezes e em ambas acabou perdendo uma delas. Seu jeito nada político de falar sobre o mundo da gastronomia tem, possivelmente, alguma relação com a má vontade do Michelin. A comida, porém, parece ter tantas estrelas quanto a dos demais. E é muito apreciada por dinastias brasileiras como os Moreira Salles e os Setúbal, do grupo Itaú Unibanco. Meneau exibe um álbum de 2009, quando Pedro Moreira Salles fechou o L’Ésperance para comemorar os seus 50 anos. Mas, se parece tratar o assunto das estrelas com desdém, o capricho de suas carnes, temperos e suflês soam como um tapa de luva de pelica nos julgadores.

De volta, enfim, ao santuário de Bernard Loiseau, hoje comandado por sua viúva Dominique. Por muito tempo, o lugar foi conhecido como Hotel La Côte d’Or, em referência à área de seus vinhedos. Hoje, é mais um Relais & Chateaux, com a cozinha sob comando de Patrick Bertron. A ausência de Loiseau está representada em quase todas as áreas públicas do hotel, com fotos, lembranças e livros que ele mesmo escreveu. Só o que não falta – e basta jantar em seu conhecido salão – é a terceira estrela, aquela que iriam lhe tirar, que lhe custou a vida, mas continua lá. E, com 13 astros na minha constelação, volto à Terra. A caçada foi perfeita!