Mesmo que virtuais, os desencontros com a chef Ana Luiza Trajano, de 42 anos, serviram como a pitada de sal que faltava para uma conversa surpreendente. A expectativa sempre é alta para ouvir essa referência na valorização da gastronomia nacional. Com a lucidez de quem nunca perde os pés no chão, Ana Luiza soube temperar com maestria os holofotes naturais que recaem sobre quem é filha de Luiza Helena Trajano (que assumiu a liderança do Magazine Luiza em 1991) e sobrinha-neta de Luiza Trajano Donato (que começou a saga da organização em 1957).
Nascida em Franca (SP), Ana Luiza é uma ativista assumida da culinária brasileira. Aos 25 anos, fundou o restaurante paulistano Brasil a Gosto (que encerrou as atividades em 2016) e foi precursora ao servir ingredientes 100% nacionais em um formato de alta gastronomia e, de certa forma, começar o longo e inacabado processo de educação dos brasileiros sobre sua própria culinária. Gostou tanto da causa que a evoluiu para o Instituto Brasil a Gosto, que tem como missão a difusão da cultura nacional por meio dos alimentos.
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Há um ano e meio, aderiu ao teletrabalho e mudou-se para Paris com seus dois filhos, Pedro e Antoine, frutos da relação com o ex-marido Yann Corderon, chef de cozinha francês. Além de propiciar a vivência na capital francesa aos filhos, o objetivo da mudança de endereço foi conquistar dois novos diplomas: chef pâtissier pela École Ferrandi e a pós-graduação para chefs já formados da École de Cuisine Alain Ducasse.
Confira a seguir trechos da entrevista.
Forbes: Quais são as memórias da sua infância ligadas ao que faz hoje?
Ana Luiza Trajano: Sempre cozinhei. Acho que, assim como as minhas amigas gostavam de brincar de bonecas, eu gostava mesmo de cozinhar, e escolhia as casas aonde eu ia pelas mães que cozinhavam também. Adorava fazer pão de queijo. Em casa do interior sempre está acontecendo alguma coisa na cozinha. Tive uma infância muito solta por lá, ficava no pomar e andava de bicicleta. Realmente tinha o direito de ir e vir, sempre muito conectada com a natureza. Morei em Franca até os 14 anos. Aos 15, mudei para Ribeirão Preto para estudar para o vestibular. Cresci muito próximo das minhas avós e lembro muito da convivência familiar.
Como foi o processo de tornar-se chef?
Quando decidi cursar gastronomia, depois da formatura em administração pela Faap, ainda não existia esse curso no país. Parti então para o norte da Itália, na região do Piemonte, e na sequência trabalhei em Firenze. Durante a minha primeira graduação, estagiei com o chef Sergio Arno, quando estava de férias.
Por que a Itália?
Sonhava em morar lá. Sempre tive uma conexão afetiva, mas nunca tive ninguém lá, não sou neta de italianos. A gente é negro, índio, bem brasileiro. A Itália tem toda a questão das receitas de cada região e a valorização dos produtos. A minha família sempre foi assim: nós ascendemos socialmente, mas não abrimos mão dos nossos costumes.
Na Itália, a culinária faz parte da cultura, e eu voltei para o Brasil querendo que a cozinha brasileira fosse vista pelos olhos que eu via desde pequena. Mesmo criança, não entendia quando ia a uma festa e serviam comida internacional, se estava no Brasil. Meus filhos cresceram tendo festas bem brasileiras. Ninguém vai tirar o meu brigadeiro.
Como é a relação da sua família com a mesa?
Tenho uma avó mineira e outra cearense. Ambas retirantes. Minha avó Zuleide tem 103 anos e ainda faz carne de sol; a minha tia-avó, Luiza, está com 93, eu acho – ela sempre mentiu a idade –, mora em Franca e na sua casa o fogão a lenha parece estar sempre ligado. As pessoas que ascendiam socialmente começavam a mudar os hábitos alimentares. O primeiro estágio era a comida industrializada, e depois a adoção da culinária internacional. O que tenho muito orgulho da minha família é que mantivemos nossos hábitos alimentares. Em casa, a briga é por paçoca, tapioca, biscoito de polvilho…
O preconceito com a culinária brasileira foi extinto?
Foi. Hoje é justamente o inverso, e o Brasil a Gosto foi como um marco para esse movimento. Nunca servi nada que não fosse 100% brasileiro. Atualmente qualquer hotel ou restaurante que inaugura tem que ter os ingredientes da terra, é fácil perceber a presença dos produtores nacionais no menu. Se a pessoa não usa isso como discurso, perde inclusive na imprensa. O que não evoluiu muito, e por isso que justamente criei o instituto, é o fortalecimento dos elos da cadeia logística, para que esses produtos e produtores sejam fortalecidos. É fácil afirmar que, assim que um restaurante deixa de faturar, ele para de comprar e dessa forma alguns produtores chegam a passar fome. Durante a pandemia, estruturamos um projeto de compra de alimentos de produtores prejudicados e doamos para a Brasilândia [foram arrecadados R$ 150 mil por meio de doações e crowdfunding, revertidos em 20 toneladas de alimentos]. Também existe o fato de que é mais fácil comprar produtos franceses e italianos do que os locais. Por exemplo, fui casada com um chef francês, e o meu custo de mercadoria era mais alto que o deles. Ele tinha mais fornecedor de pato do que eu de pirarucu.
O que pode ser feito em relação a essa discrepância?
A gente tem que impulsionar, além de olhar para esses restaurantes que trabalham e precisam se fortalecer através dos projetos, para que os recursos cheguem até a pessoa certa, e que o dinheiro volte à comunidade. Não adianta comprar toneladas de um produto e todo o lucro ficar para o intermediador. As políticas públicas são necessárias. O país tem grande quantidade de produtos de qualidade, mas precisa consolidar para chegar a um preço que garanta a demanda.
O que a cultura brasileira pode nos ensinar?
O povo brasileiro é muito solidário, um ajuda o outro, divide as coisas e é extremamente criativo. A gente é focado em dar soluções e não em achar o problema. Vejo isso no cotidiano que tenho aqui. Eles falam que a nossa comida traz luz, é alegre. Nós, brasileiros, precisamos corrigir a nossa autoestima. Valorizamos todo mundo, menos os nossos produtos, e qualquer coisa que aparece parece ser melhor. Veja como os cupcakes invadiram os aniversários. Em outro lugar, não ia invadir dessa forma.
O que mais gosta de cozinhar?
São duas cozinhas: a brasileira profissional e a caseira. São duas energias completamente diferentes. A cozinha caseira é a que você abre a geladeira, vê o que tem para oferecer e cria a partir disso. A profissional você pensa e organiza para ter uma rotina. Em casa, faço muito o que os meninos querem comer. O mais novo gosta de feijoada; o primogênito, baião de dois. Adoro fazer lasanha fresca, estrogonofe. Gosto de fazer pratos de uma panela só. Amo receber pessoas em casa. Sou bem conhecida por isso, por fazer mesas de aperitivo. Ficam brincando comigo que eu converso com as mesas e que assim ficam muito lindas. O que cozinho depende muito de onde estou [no dia da entrevista, estava às vésperas de uma viagem ao Algarve, com vontade de cozinhar moqueca]. O que mais gosto é fazer as compras de ingredientes, mas perdi essa liberdade na pandemia. A comida é uma grande transformação, uma forma de curar muita gente.
O que fará no pós-pandemia? Vai retornar ao Brasil?
Vim para a França planejando ficar 18 meses. Agora decidi que vou ficar mais, pelos meninos e para fazer um curso de crossfunding aqui em Paris, pois quero captar dinheiro para o Brasil. O trabalho do Instituto é infinito, e a nossa ação acaba sendo mais tímida pela capacidade que conseguimos escalar. Em breve eu devo voltar para a televisão. O projeto que eu ia fazer sobre viagens acabou sendo postergado para o próximo ano. Mas eu invento tanta moda, menina… Em breve tem algo novo.
Reportagem publicada na edição 79, lançada em agosto de 2020
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