“Com pesar, informo que o papa emérito, Bento 16, faleceu hoje às 9h34 no mosteiro Mater Ecclesiae no Vaticano. Mais informações serão fornecidas o mais breve possível”, disse o porta-voz em um comunicado por escrito.
No início desta semana, o Papa Francisco divulgou durante sua audiência geral semanal que seu antecessor estava “muito doente” e pediu que as pessoas orassem por ele.
Os conservadores da Igreja consideram o ex-papa seu porta-estandarte e alguns ultratradicionalistas até se recusaram a reconhecer Francisco como um pontífice legítimo.
Eles criticaram Francisco por sua abordagem mais receptiva aos membros da comunidade LGBTQ+ e aos católicos que se divorciaram e se casaram novamente fora da Igreja, dizendo que ambos estavam minando os valores tradicionais.
RENÚNCIA
Bento 16, ao renunciar, deixou para trás uma Igreja Católica abalada por escândalos de abuso sexual, atolada em má administração e polarizada entre conservadores e progressistas.
Conservadores alarmados com os movimentos progressistas de Francisco viam Bento como o guardião da tradição. Várias vezes ele teve que dizer aos admiradores nostálgicos por meio de visitantes: “Existe um papa, e é Francisco”.
Professor de piano e teólogo formidável, Bento 16 foi, como ele mesmo admitiu, um líder fraco que teve dificuldade para se impor na opaca burocracia do Vaticano e tropeçou de crise em crise durante seu papado de oito anos.
Bento 16 se desculpou repetidamente pelo fracasso da Igreja em erradicar o abuso sexual de crianças pelo clero e, embora tenha sido o primeiro papa a tomar medidas sérias contra o abuso, os esforços falharam em impedir um rápido declínio na frequência à igreja no Ocidente, especialmente na Europa.
Abalado com o relatório, ele reconheceu em uma carta pessoal que erros ocorreram e pediu perdão. Seus advogados argumentaram em uma refutação detalhada que ele não era o culpado direto.
Bento será mais lembrado por chocar o mundo em 11 de fevereiro de 2013, quando anunciou em latim que estava renunciando, dizendo aos cardeais que era muito velho e frágil para liderar uma instituição com mais de 1,3 bilhão de membros.
Seria difícil seguir seu carismático predecessor, o papa João Paulo 2º, que morreu em 2005, e Bento admitiu as dificuldades em uma despedida emocionada.
A sede de São Pedro foi declarada vaga em 28 de fevereiro de 2013, quando Bento 16 passou a residir no retiro papal de verão em Castelgandolfo, sul de Roma, enquanto cardeais de todo o mundo se reuniam no Vaticano para escolher seu sucessor.
PAPA EMÉRITO
Antes de renunciar formalmente, Bento 16 e seus assessores escolheram unilateralmente o título de “papa emérito” e decidiram que ele continuaria a usar uma batina branca, embora ligeiramente modificada.
Alguns na Igreja reclamaram, dizendo que ele deixou seu sucessor de mãos atadas. Disseram que ele deveria ter voltado a ser cardeal ou padre vestido de vermelho ou preto.
Ele raramente aparecia em público, geralmente para grandes cerimônias da Igreja, apesar de ter feito uma visita comovente em junho de 2020 a seu irmão mais velho doente, Georg, um padre, na Baviera. Georg morreu pouco depois, aos 96 anos.
Embora tenha dito que permaneceria “escondido do mundo”, Bento não cumpriu essa promessa e por vezes causou polêmica e confusão por meio de seus escritos.
Em um ensaio para uma revista da Igreja na Alemanha em 2019, ele declarou que a crise do abuso de crianças por padres era resultado do efeito da revolução sexual dos anos 1960, do que chamou de panelinhas homossexuais nos seminários e de um colapso geral da moralidade.
A confusão sobre o papel de Bento 16 chegou ao auge em janeiro de 2020 sobre a extensão de seu envolvimento em um livro escrito por um cardeal conservador que alguns viram como uma tentativa de influenciar um documento que o papa Francisco estava preparando.
Isso levou Francisco a demitir o arcebispo Georg Ganswein, secretário de Bento 16, de um importante cargo no Vaticano. O papel de Ganswein como intermediário entre Bento e o cardeal não ficou claro, com muitos acreditando que ele havia enganado Bento, o cardeal ou ambos.
O episódio levou a pedidos de algumas autoridades do Vaticano por regras claras sobre o status de qualquer futuro pontífice que renunciar.
GAFES
Ele antagonizou os muçulmanos ao parecer sugerir que o Islã era inerentemente violento e irritou os judeus ao reabilitar um negacionista do Holocausto. As gafes e tropeços atingiram o ápice em 2012, quando documentos vazados revelaram corrupção, intrigas e rixas dentro do Vaticano.
O caso “Vatileaks” resultou na prisão de seu mordomo, Paolo Gabriele, condenado por entregar documentos secretos a um jornalista. Bento mais tarde o perdoou. Gabriele conseguiu um emprego em um hospital do Vaticano e morreu em 2020.
A mídia especulou que a saga, que expôs alegações de um lobby do clero gay operando contra o papa, pode tê-lo pressionado a renunciar. Bento insistiu que ele renunciou porque não podia mais suportar todo o peso do papado, incluindo as cansativas viagens internacionais que a função exigia.
“Um dos meus pontos fracos talvez seja a falta de determinação no comando e na tomada de decisões. Na realidade, sou mais um professor, uma pessoa que reflete e medita sobre questões espirituais”, disse Bento 16 no livro “Último Testamento”, do jornalista alemão Peter Seewald.
“O comando prático não é o meu forte e isso é certamente um ponto fraco. Mas não posso me ver como um fracasso.”
“ROTTWEILER DE DEUS”
Ele nasceu Joseph Aloisius Ratzinger em 16 de abril de 1927, na aldeia de Marktl, no sul da Alemanha, perto da Áustria.
Ratzinger tornou-se padre em 1951 e ganhou atenção como conselheiro teológico liberal no Concílio Vaticano II de 1962 e que levou a uma profunda reforma da Igreja.
No entanto, o marxismo e o ateísmo dos protestos estudantis de 1968 em toda a Europa o levaram a se tornar mais conservador para defender a fé contra o crescente secularismo.
Após passagens como professor de teologia e depois arcebispo de Munique, Ratzinger foi nomeado em 1981 para chefiar a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), sucessora da Inquisição, onde ganhou o epíteto de “Rottweiler de Deus”.
Ratzinger primeiro voltou sua atenção para a “teologia da libertação” popular na América Latina, ordenando o silenciamento de um ano em 1985 do frade brasileiro Leonardo Boff, cujos escritos foram atacados por usar ideias marxistas.
Na década de 1990, Ratzinger pressionou os teólogos, principalmente na Ásia, que viam as religiões não cristãs como parte do plano de Deus para a humanidade.
Um documento de 2004 do gabinete de Ratzinger denunciou o “feminismo radical” como uma ideologia que minava a família e obscurecia as diferenças naturais entre homens e mulheres.
ESCÂNDALOS
Escândalos de abuso infantil perseguiram a maior parte de seu papado. Ele ordenou um inquérito oficial sobre os abusos na Irlanda, o que levou à renúncia de vários bispos. Mas as relações do Vaticano com a outrora devota Irlanda católica despencaram durante seu papado. Dublin fechou sua embaixada na Santa Sé em 2011.
As vítimas exigiram que ele fosse investigado pelo Tribunal Penal Internacional. O Vaticano disse que ele não poderia ser responsabilizado pelos crimes de outras pessoas e o tribunal decidiu não aceitar o caso.
Em setembro de 2013, ele negou ter abafado os escândalos. “No que diz respeito a você mencionar o abuso moral de menores por padres, só posso, como você sabe, reconhecê-lo com profunda consternação. Mas nunca tentei encobrir essas coisas”, disse ele em uma carta ao autor italiano Piergiorgio Odifreddi.
Uma viagem à Alemanha também provocou a primeira grande crise de seu pontificado. Em uma palestra na universidade em 2006, ele citou um imperador bizantino do século 14 dizendo que o Islã só trouxe o mal ao mundo e que foi espalhado pela espada.
Após protestos que incluíram ataques a igrejas no Oriente Médio e o assassinato de uma freira na Somália, o papa disse que lamentava qualquer mal-entendido que o discurso tivesse causado.
Em um movimento amplamente visto como conciliatório, ele fez uma viagem histórica à Turquia predominantemente muçulmana no final daquele ano e rezou na Mesquita Azul de Istambul com o grão-mufti da cidade.
Mas em 2009 Bento cometeu um passo em falso após o outro.
O mundo judaico e muitos católicos ficaram indignados depois que ele suspendeu a excomunhão de quatro bispos tradicionalistas, um dos quais era um notório negador do Holocausto. Bento 16 disse mais tarde que o Vaticano deveria ter pesquisado melhor sobre ele.
Os judeus foram ofendidos novamente em dezembro de 2009, quando ele reiniciou o processo de colocar seu predecessor Pio 12, acusado por alguns judeus de fechar os olhos para o Holocausto, de volta ao caminho da santidade após uma pausa de dois anos para reflexão.
NOMES NO VATICANO
No Vaticano, ele preferiu nomear homens em quem confiava e algumas de suas primeiras nomeações foram questionadas.
Ele escolheu o cardeal Tarcisio Bertone, que havia trabalhado com ele durante anos no escritório doutrinário do Vaticano, para ser secretário de Estado, embora Bertone não tivesse experiência diplomática. Bertone mais tarde foi envolvido em um escândalo financeiro sobre a reforma de seu apartamento no Vaticano.
Bento 16 apoiou a unidade cristã, mas outras religiões o criticaram em 2007, quando ele aprovou um documento que reafirmou a posição do Vaticano de que as denominações cristãs não católicas não eram igrejas plenas de Jesus Cristo.
Bento 16 reformulou algumas decisões do concílio para alinhá-las mais com as práticas tradicionais, como a missa em latim e o governo altamente centralizado do Vaticano.
Um dos temas a que voltou frequentemente foi a ameaça do relativismo, rejeitando o conceito de que os valores morais não eram absolutos, mas relativos a quem os detinha e ao tempo em que viviam.
Bento 16 escreveu três encíclicas, a forma mais importante de documento papal, incluindo a “Spe Salvi” (Salvos pela Esperança) de 2007, um ataque ao ateísmo. A “Caritas in Veritate” (Caridade na Verdade) de 2009 apelou a que se repensasse a forma como a economia mundial é gerida.
“Ele fala pouco… mas com a mesma profundidade de antes”, disse Francisco certa vez.