Anna Nicole Smith, Playboy, Suprema Corte e a luta pela fortuna do marido

11 de junho de 2023
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Anna Nicole Smith tenta se proteger das câmeras ao chegar à Suprema Corte para ouvir seu caso em 28 de fevereiro de 2006

“É muito caro ser eu”, disse em 2005 a ex-modelo da Playboy (depois transformada em atriz) Anna Nicole Smith sobre a controversa batalha legal pela herança de seu marido, J. Howard Marshall.

Embora o drama de tribunal tenha mais de uma década, o recém-lançado documentário da Netflix, “Anna Nicole Smith: You Don’t Know Me” (Anna Nicole Smith: Vocês Não me Conhecem, em tradução para o português), reavivou o interesse pela história – a produção chegou a ficar no top 10 filmes da plataforma nos EUA.

Mas a obra pode ser insatisfatória. Em parte, porque aqueles que estiveram mais envolvidos na história de Anna – incluindo a ex-estrela – não estão mais vivos para contarem suas versões ou se afastaram do projeto. Larry Birkhead, o pai da filha de Anna, referiu-se ao documentário, do qual ele se recusou a participar, como uma “fossa”. “Não é exatamente jornalismo de primeira”, disse ao Yahoo.

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Embora a produção da Netflix possa não ter sucesso em contar a história da verdadeira Anna, ele também não se aprofunda nas questões legais que consumiram grande parte de sua vida adulta.

A modelo era figura fácil nas manchetes dos anos 1990, graças principalmente a campanhas publicitárias, papéis em filmes como “Na Roda da Fortuna” e seu próprio reality show, mas foi a luta pela herança de seu falecido marido que levou seu nome além dos tabloides. A luta chegou à Suprema Corte dos EUA – duas vezes, vale dizer.

Quem foi Anna Nicole Smith e J. Howard Marshall

Anna Nicole Smith – cujo nome verdadeiro era Vickie Lynn Hogan – nasceu em 18 de novembro de 1967, em Houston, Texas. Sua infância foi repleta de drama. Ela abandonou o ensino médio na nona série, casou-se aos 17, teve o primeiro filho aos 18 e se separou aos 19.

Ela trabalhou em lugares como o Walmart antes de conseguir o emprego que mudaria sua vida: o de dançarina no Gigi’s Cabaret. No tribunal, ela testemunhou que, em uma noite de 1991, J. Howard Marshall, então com 86 anos, foi levado ao clube para vê-la se despir.

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Anna Nicole Smith em 1997

Marshall estava deprimido, disseram amigos, após a morte naquele mesmo ano de duas mulheres importantes em sua vida: sua esposa, Bettye, de 88 anos, e sua amante, Lady Walker, de 51 anos. Ele se referiu a última perda como “a coisa mais trágica que já me aconteceu”.

A trajetória de sucesso de Marshall começou em 1931, quando se formou em direito pela Yale Law School. Na sequência, atuou brevemente como reitor assistente da universidade e partiu para um cargo público no Departamento do Interior, onde se familiarizou com a indústria petroleira. Isso o levou a passagens pelo setor privado, incluindo Standard Oil, Ashland Oil and Refining Co. e Signal Oil and Gas.

O status financeiro de Marshall mudou intensamente nas décadas de 1950 e 1960, quando ele se envolveu com a família Koch. Da empresa que era cofundador, a Great Northern Oil, Marshall primeiro vendeu uma participação a Fred Koch. Em 1969, com o filho de Fred, Charles Koch, ele trocou o restante de suas ações por uma participação estimada de 16% na Koch Industries – hoje a segunda maior empresa privada da América.

Quase toda essa história aconteceu antes mesmo de Anna Nicole Smith nascer.

A união

Anna disse que Marshall gastou cerca de US$ 1.000 com ela na primeira noite em que se conheceram. No dia seguinte, ele a convidou para almoçar em um quarto de hotel. Depois disso, segundo testemunhou Anna no tribunal, ele deu a ela um envelope cheio de dinheiro e disse que ela não precisava dançar no clube novamente.

Como Anna contou, Marshall ficou encantado. Ele chegou a gastar US$ 1,7 milhão com a loira em 1992 (cerca de US$ 3,8 milhões em valores atuais), incluindo o pagamento de outra cirurgia de aumento dos seios. O bilionário chegou a colocá-la na folha de pagamento da Marshall Petroleum como consultora – um boato que parecia absurdo, mas foi confirmado quando Anna declarou os vencimentos à Receita Federal anos depois.

Ao mesmo tempo, a carreira de modelo de Anna Nicole estava esquentando. Ela havia enviado fotos para a revista Playboy e chamou a atenção de Hugh Hefner. Em 1992, foi capa de revista e, no ano seguinte, foi nomeada a Playmate do ano. Sua recompensa? Um Jaguar conversível, US$ 100.000 e 10 páginas duplas na edição de junho de 1993.

Em 1994, com 26 anos, Anna se divorciou de seu primeiro marido, abrindo caminho para se casar com Marshall, então com 89 anos. Na cerimônia, realizada em uma capela drive-in em Houston, ela usou um diamante de 22 quilates (supostamente no valor de US$ 107.000).

O casamento durou cerca de 13 meses. Marshall morreu em 1995 aos 90 anos. Seu patrimônio valia US$ 1,6 bilhão na época – cerca de US$ 3,2 bilhões (R$ 15,7 bilhões) hoje.

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Uma fotografia de Anna Nicole Smith e J. Howard Marshall II ao lado do caixão do empresário, em 8 de agosto de 1995. Ele morreu aos 90

A treta judicial

Marshall havia se envolvido em uma série de manobras de planejamento tributário ao longo dos anos, incluindo a transferência de participações na Koch Industries (então mantida em sua maioria na empresa que ele fundou chamada Marshall Petroleum) para seus familiares. Ele não deixou nada para Anna em seu testamento ou fundos, um movimento que o filho de Marshall, E. Pierce Marshall, caracterizou como proposital. Ela, no entanto, afirmou que, embora Marshall a tivesse deixado de fora do testamento, ele planejava cuidar dela, incluindo a promessa de entregar metade de sua propriedade.

Casos judiciais, às vezes, podem provocar uniões inusitadas – e foi o que aconteceu nesse caso. Pierce se beneficiou da morte de seu pai de acordo com o testamento, mas o outro filho de Marshall, J. Howard Marshall III, assim como Anna, foi excluído. Marshall nunca perdoou seu homônimo por apoiar William e Frederick Koch pelo controle da Koch Industries, cortando-o de sua herança. Como resultado, a modelo e o filho deserdado se uniram para lutar contra Pierce por justiça, disseram eles.

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O caso foi a um tribunal do Texas, onde trocas de farpas entre Smith e o advogado de Marshall, Rusty Hardin, viraram notícia nacional. Em uma sessão infame, quando Anna Nicole começou a chorar no banco das testemunhas, Hardin perguntou: “Srta. Marshall, você está fazendo aulas de atuação?”, ao que ela respondeu: “Dane-se, Rusty.”

Após um julgamento de seis meses, o tribunal ficou ao lado de Pierce.

Anna, no entanto, teve uma nova chance. Em 25 de janeiro de 1996, a modelo entrou com um pedido de falência na Califórnia, alegando ter dívidas superiores a US$ 1 milhão, que não seria capaz de pagar. Entre os credores listados estavam vários escritórios de advocacia, Harry Winston, Neiman Marcus e uma sentença de quase US$ 850.000 concedida a Maria Antonia Cerrato em um processo por assédio sexual, agressão sexual e prisão falsa. Cerrato, que havia sido babá do filho de Anna, alegou que a mãe a assediou sexualmente durante uma viagem de negócios a Las Vegas. Anna contestou, mas não deu continuidade ao processo – então um juiz decidiu que ela teria que pagar Cerrato.

A ideia do tribunal de falências é proteger o devedor e garantir que os credores recebam o que lhes é devido na medida do possível. Isso significa que, ao entrar com um pedido de falência, é necessário listar as dívidas – o que Anna fez – e os ativos. Ela não tinha muitos ativos em comparação com suas dívidas, listando cerca de US$ 2,7 milhões em propriedade pessoal e imobiliária, em comparação com quase US$ 9 milhões em possíveis passivos. Ela incluiu mais um ativo em seu pedido: seu suposto interesse na propriedade de seu falecido marido.

Nesse contexto, Pierce contra-atacou, processando Anna por difamação e outros pedidos no Texas. Mas quando soube da falência, ele retirou a ação e buscou, ao invés disso, o tribunal de falências – uma decisão que mais tarde, provavelmente, se arrependeu. Ele alegou mau comportamento por parte da ex-madrasta. Em resposta, ela contra-processou, dizendo que Pierce interferiu em seu direito de tomar posse da propriedade do patrimônio de Marshall. As petições legais prepararam o cenário para um longo processo judicial na Califórnia.

Em 1999, o tribunal de falências emitiu uma ordem cancelando todas as dívidas e reclamações contra Anna, exceto uma: a reclamação de Pierce por difamação. Essa reclamação e a reconvenção foram marcadas para ir a julgamento em outubro de 1999. Pouco antes, o juiz concedeu o pedido de Anna para julgamento sumário – decidindo efetivamente que Pierce não tinha um pedido válido. O julgamento prosseguiu, no entanto, com base na reconvenção da modelo. Pierce sugeriu que ela era uma oportunista e contestou sua acusação de que Marshall pretendia cuidar dela pelo resto de sua vida. Anna, por sua vez, testemunhou: “Não me importo com o que os outros dizem, eu amava aquele homem.”

Em 29 de dezembro de 2000, o tribunal de falências decidiu a favor de Anna, concluindo que Pierce havia interferido nos esforços de Marshall para presentear Smith com US$ 449 milhões. O tribunal também concedeu a ela US$ 25 milhões em danos punitivos pelo que foi descrito nos documentos do tribunal como “comportamento flagrante”.

Ao mesmo tempo, o processo de inventário continuava no Texas. Mesmo que Anna tivesse desistido de sua reivindicação, confiando no julgamento de falência, Pierce continuou lutando, modificando os procedimentos para adicionar novas reivindicações. Eventualmente, um júri do Texas não concedeu nada a Smith no processo de testamento. Em julho de 2001, o juiz Mike Wood confirmou as conclusões do júri e ordenou que a modelo pagasse mais de US$ 1 milhão para cobrir os custos legais e despesas de Pierce.

Foi aqui que o jogo de pingue-pongue legal realmente esquentou. Ambos os julgamentos não podiam ser verdadeiros.

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A questão foi para o tribunal federal, onde um juiz anulou a decisão do tribunal de falências da Califórnia e emitiu uma nova ordem que reduzia o pagamento para US$ 88 milhões. Pierce protestou, alegando que os tribunais federais não tinham autoridade para decidir a reivindicação contrária e que o local apropriado era o tribunal testamentário do Texas. Ele recorreu ao Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, que reverteu a decisão, concluindo que um tribunal federal não tinha autoridade para anular a sentença.

Em 17 de maio de 2005, os advogados de Anna entraram com uma petição na Suprema Corte dos Estados Unidos, pedindo ao tribunal que esclarecesse o alcance da chamada exceção testamentária, que permite o controle de um caso aos tribunais locais ainda que a jurisdição federal seja a apropriada, mesmo em reivindicações entre partes “ancilares” ou “relacionadas” ao testamento. Alguns meses depois, a Suprema Corte concordou em ouvir a questão.

A habitual enxurrada de alegações seguiu, com uma adição curiosa: em 21 de novembro de 2005, a administração Bush pediu ao então Procurador-Geral interino Paul Clement para apresentar argumentos em defesa de Anna. Talvez isso pareça um pouco generoso. A equipe jurídica da Casa Branca não estava se alinhando com a modelo em termos de evidência ou equidade, mas sim em termos técnicos: eles sentiam que a jurisdição do tribunal federal deveria prevalecer em disputas desse tipo envolvendo tribunais testamentários estaduais.

O assunto foi discutido na Suprema Corte em 28 de fevereiro de 2006. Anna estava presente, assim como Pierce, que jurou que ela não receberia nada do patrimônio de seu pai.

Pouco mais de dois meses depois, a Suprema Corte decidiu por unanimidade a favor de Anna. A juíza Ruth Bader Ginsburg emitiu o parecer do Tribunal. Notavelmente, a corte constatou que “a exceção de sucessões reserva aos tribunais estaduais de sucessões o inventário ou anulação de um testamento e a administração do patrimônio de um falecido (…) Mas não impede os tribunais federais de julgar questões fora desses limites e de outra forma dentro da jurisdição federal”.

Isso foi importante, escreveu Ginsburg, porque a reivindicação de Anna não “envolvia a administração de uma propriedade, a anulação de um testamento ou qualquer outro assunto puramente testamentário”. Em vez disso, Anna foi “provocada pela reivindicação de Pierce nos processos de falência” e estava buscando um julgamento contra ele, não ao inventário ou anulação de um testamento. Com isso, em 1º de maio de 2006, o Supremo Tribunal reverteu as conclusões do Tribunal de Apelações e devolveu o assunto para revisão.

Pierce morreu cerca de um mês depois, em 20 de junho de 2006. Sua viúva, Elaine Marshall, assumiu o lugar dele para ver o assunto – que já durava mais de uma década – terminar.

Anna morreu em 8 de fevereiro de 2007, após ser encontrada sem resposta devido a uma overdose acidental de medicamentos prescritos. Ela tinha 39 anos. A ex-modelo deixou para trás uma filha pequena, Dannielynn Birkhead (seu filho mais velho, Danny, morreu de overdose em 2006), e o assunto prosseguiu em nome de Birkhead.

Assim como antes, os tribunais não chegaram a um acordo. Por isso, em 28 de setembro de 2010, a Suprema Corte novamente concordou em ouvir o caso. Desta vez, a legenda do caso foi um pouco diferente: Stern vs. Marshall. Stern, um advogado, afirmava ser o pai da filha de Smith, Dannielynn – e até adicionou o sobrenome Stern ao dela – até que um teste de paternidade provou o contrário, constatando que o pai era Larry Birkhead (muitos homens afirmaram ser o pai da menina, incluindo o marido de Zsa Zsa Gabor, o príncipe Frederic von Anhalt). Apesar de não ser o pai biológico, Stern representava Dannielynn na batalha contra Pierce porque ele era o executor da propriedade de Anna.

Em junho de 2011, uma Suprema Corte dividida decidiu contra o espólio de Anna por 5 a 4. A questão era, novamente, estreita: o tribunal de falências tinha jurisdição para enfrentar a reconvenção da ex-modelo?

Por lei, um juiz de falências só pode “apresentar propostas de constatações de fato e conclusões de direito ao tribunal distrital”. O tribunal de falências concluiu que a reconvenção de Anna era um processo central, enquanto o tribunal distrital discordou. Por fim, a Suprema Corte concluiu que, embora o estatuto permita que o tribunal de falências julgue definitivamente a reconvenção de Anna, “o Artigo III da Constituição não o permite”. Com isso, a Suprema Corte rejeitou o pedido de arquivamento do tribunal de falências.

Desta vez, a juíza Ginsburg se viu do lado da dissidência, juntamente com os juízes Breyer, Sotomayor e Kagan. O Juiz Presidente Roberts apresentou a opinião da maioria do Tribunal, escrevendo que “este processo, com o passar do tempo, tornou-se tão complicado, que não há dois advogados que possam falar sobre isso por cinco minutos, sem chegar a um desacordo total. Inúmeras crianças nasceram em meio à causa: inúmeros jovens se casaram com ela”. E, tristemente, as partes originais “saíram dela com a morte”. Uma “longa procissão de [juízes] entrou e saiu” durante esse tempo, e ainda assim a ação “arrasta-se longamente perante o Tribunal”.

Ele qualificou que essas palavras não foram escritas sobre este caso – foram tiradas do romance de Charles Dickens, “Bleak House” -, “mas poderiam ter sido”.

Surpreendentemente, o assunto não terminou por aí. Em 2011, o espólio de Anna apresentou outro processo na justiça federal, buscando indenização do espólio de Pierce. O tribunal não concordou em examinar o assunto. Isso significava que, em última análise, nem Anna nem seu espólio – incluindo a filha Dannielynn – receberam a fortuna esperada do espólio de Marshall. O assunto foi encerrado com Anna não conseguindo provar seu caso no tribunal testamentário e de falências.

Ao longo do processo, os Marshalls permaneceram ricos. Em 2020, a Forbes incluiu a família Marshall na lista das famílias mais ricas da América. Com um patrimônio líquido de US$ 18,5 bilhões (quase R$ 91 bilhões), eles ficaram em 14º lugar na lista.

O processo de falência de Anna foi finalmente encerrado em 24 de outubro de 2022, mais de 25 anos após seu início. A ex-modelo e a sua luta pelo dinheiro de Marshall dominaram as manchetes por anos e, mesmo agora, ainda estamos falando sobre isso. Então, no final das contas, ela finalmente conseguiu o que procurava, segundo o que disse à revista Los Angeles em 1993: “Sempre gostei de atenção. Não recebi muito enquanto crescia e sempre quis ser percebida.”