Poucos cozinheiros testemunharam sua carreira ascender de forma tão meteórica quanto a peruana Pía León. Natural de Lima, aos 37 anos ela carrega no currículo uma série de louros inimagináveis para a garotinha de oito anos que anotava em um caderno as receitas que via na TV. Foi eleita a melhor chef mulher do mundo pelo 50 Best Restaurants em 2021, teve seu restaurante (o Central, que comanda ao lado do marido, Virgilio Martínez) no topo do Oscar da gastronomia e, na versão mais recente do ranking mundial, é a profissional feminina mais bem posicionada: seu empreendimento solo, o Kjolle, saltou para a 16ª posição dos melhores restaurantes de 2024, inaugurando um feito inédito para uma chef dentro da premiação desde 2005. Na versão regional do 50 Best, divulgada em novembro deste ano, a mesma coisa – o Kjolle é o 4º da América Latina, melhor colocação feminina na lista, cercada por estabelecimentos masculinos.
Por meio do centro de pesquisas Mater, ao lado de Virgilio e da cunhada Malena, Pía ajuda a liderar um movimento que preserva a culinária ancestral peruana, com sua riqueza dos Andes à Amazônia. Ano passado, ela foi nomeada pela Forbes uma das 50 mulheres mais poderosas do Peru, participou de projetos de Michelle Obama (o programa infantil de televisão Waffles and Mochi) e fez parte do programa acadêmico Science and Cooking, da Universidade de Harvard.
Leia também
Mas, para ela, tudo isso é apenas parte da empreitada. Em um mar de restaurantes comandados por homens, Pía diz que não alcançou seu auge. “Ainda há um longo caminho a percorrer. Quero continuar aprendendo, ensinando, fazendo novos projetos. É isso que me mantém viva e me faz levantar da cama.”
Do alto da gastronomia internacional, a chef não esquece por um segundo do Peru, motivo de paixão, orgulho e inspiração. Na sua cozinha, tudo é baseado em uma filosofia de raízes fincadas fundo e pés no chão – sem se deslumbrar pelos prêmios. Um prato que define bem seu estilo à mesa é o que serve no Kjolle desde a abertura, em 2018: uma torta de tubérculos e raízes andinas, montada de forma colorida e delicada. Os ingredientes são simples e cotidianos – a execução, jamais. Pía gosta justamente de transformar o comum em extraordinário, e nada melhor do que a biodiversidade incrível do Peru para ajudá-la.
Hoje, com tantos reconhecimentos, ela entende a missão que tem de divulgar a cultura do seu país. “Quero fazer um trabalho que perdure no tempo.” Em uma tarde agradável de julho, durante um raro momento de férias, Pía León conversou com a Forbes Brasil sobre sua relação com a comida, os desafios do caminho até o topo, legado e a força da mulher na cozinha profissional.
Forbes – Quais são suas primeiras memórias de comida?
Pía León – Sempre gostei de estar na cozinha. Na minha família, gostamos muito de desfrutar da gastronomia – não só de cozinhar, mas de partilhar à mesa. Aprendi muito com a minha mãe, que cozinha muito bem, e com minha avó paterna. Então, vivi isso desde muito jovem e por isso tomei a decisão de estudar culinária. Nunca tive dúvida. Aos oito anos, lembro de ficar na frente da TV anotando em um caderninho as receitas das chefs Dolli Irigoyen e Narda Lepes. Tenho esse caderno até hoje. Quando decidi ser cozinheira, tive esses dois grandes exemplos a seguir, e olha como é a vida: este ano, estive com a Narda, cozinhando ao seu lado. Se você tem muita certeza do que quer, as coisas podem ser alcançadas.
Você foi a primeira mulher da equipe do Central. Como foi esse processo?
Entrei com 21 anos, como auxiliar na área de frios, e passei por todas as áreas até me tornar chef de cozinha. Não é fácil estar em uma cozinha profissional, é um ambiente hostil. Naquela época, trabalhava 18 horas por dia. Às vezes, me perguntam, como mulher, se tive mais desafios do que os homens. Obviamente foi um pouco mais difícil, porque sempre tive que ter muita consciência para me provar todos os dias.
Quando soube que teria sucesso?
Desde o primeiro dia [risos]. Sou muito da intuição, sabia que estava no lugar certo desde o começo. Não tanto pelo que se cozinhava ou pela filosofia do restaurante, mas, como primeira impressão, senti que o Virgilio era apaixonado por gastronomia, muito talentoso.
Abrir o Kjolle foi uma tentativa de ter a sua própria voz?
Sim. Antes, falavam de Pía nas sombras de Virgilio. Não me arrependo do papel que tive naquele momento, foi a minha vez de aprender. Mas então, em 2018, estava pronta para expressar o jeito como via a gastronomia. Minha cozinha é mais intuitiva, com muito amor pelo Peru e nossos ingredientes, sem ser tão rígida.
Os diversos prêmios também trazem um peso?
Eles são importantes, porque ajudam a dar visibilidade e motivar a equipe. Mas não podem ser o centro da sua vida, isso é insustentável a longo prazo. Não vou mentir e dizer que tudo é feliz, porque não é. Tem felicidade, claro, mas há responsabilidade, pressão, muito trabalho. O melhor é chegar em um ponto de equilíbrio para lidar com todas essas emoções. Estou falando isso, mas ainda não consegui [risos]. Estou atrás dessa fórmula.
O fato de o 50 Best ter um prêmio de melhor chef mulher indica que estamos mais perto ou longe de igualdade de gênero na cozinha?
Seria perfeito e ideal que ele não existisse, mas acredito que ainda é preciso dar visibilidade ao trabalho de mais mulheres. Temos que ver do ponto de vista positivo: esse tipo de reconhecimento inspira muitas jovens. Espero que, daqui a alguns anos, o prêmio não exista mais por não ser necessário. Estamos no caminho para fazer essa mudança. Já vejo muito mais mulheres nas cozinhas profissionais.
Qual é o seu maior desafio atual?
Um desafio constante é conseguir estar muito presente na vida do meu filho Cristóbal, de oito anos. Praticamente todo o tempo livre que tenho é com ele: faço sua lancheira, vou aos seus jogos de futebol, acompanho na escola, estou em casa quando ele volta. Daí vem o legado para outras mulheres chefs: é possível sim ter uma família – complicado, mas possível.
Você já esteve no Brasil e cozinhou em restaurantes renomados. Do que mais gostou de comer quando esteve aqui?
Adoro o Brasil! Do que mais gostei foi moqueca e a castanha-de-caju, não conhecia – no Peru, só comemos o fruto. Também já experimentei dadinho de tapioca e folha de taioba – e adorei.
Tem planos para mais restaurantes?
Queremos fazer vários projetos, especialmente ligados à cultura e arte na Casa Tupac [propriedade que abriga o Kjolle e o Central], e pesquisa de produtos no Mater. Isso não necessariamente envolve novos restaurantes, mas não posso dizer que não abriremos mais. Uma boa oportunidade pode aparecer. A intenção é fazer um trabalho que perdure no tempo e deixe um legado.
-
Para fazer em casa: Receita caseira de Pía León
Aprenda a fazer o locro (ensopado), que a chef oferece ao filho aos domingos
Locro de abóbora
4 porções
Tempo de preparo: 50 minutos
Ingredientes
- 1⁄2 cebola roxa
- 3 dentes de alho
- 500 g de abóbora macre, loche ou o tipo de abóbora da sua localidade
- 2 colheres de sopa de azeite de oliva
- 3 colheres de sopa de pasta de pimenta amarela ou de outro tipo de pimenta com baixo teor de picância (de 2 a 3 pedaços)
- 50 mL ou 1/5 xícara de água
- 1⁄2 milho ou 50 g de milho debulhado
- 200 g de queijo fresco ou um tipo de queijo local similar
- 4 colheres de sopa de queijo cremoso
- 60 mL ou 1⁄4 xícara de leite fresco
- Sal a gosto
Preparação
Pique a cebola e o alho bem finos. Descasque a abóbora e corte em cubos grandes. Corte o queijo fresco em cubos pequenos. Para a pasta de pimenta: corte as pimentas ao meio e retire as veias e as sementes. Em uma panela com água fervente, coloque as pimentas por alguns minutos. Em seguida, retire as pimentas da água e escorra. Bata as pimentas no liquidificador com um pouco de água. Reserve a pasta de pimenta amarela. Aqueça o azeite em fogo médio. Quando estiver bem quente, adicione a cebola, o alho e a pasta de pimenta amarela. Deixe cozinhar por 10 minutos em fogo baixo. Adicione os cubos de abóbora e a água e deixe cozinhar por 15 minutos. Não deixe a mistura secar.
Entrevista publicada na edição 122 da revista, em agosto de 2024, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.