Distribuição B2B: o massacre da Amazon no atacado

31 de julho de 2014

Em meses recentes, a Amazon.com, colosso mundial de varejo na internet, deu o sinal verde para seis novos programas de TV originais, anunciou uma transação de streaming online com a HBO e testou a entrega de alimentos no mesmo dia na Costa Oeste dos Estados Unidos. O que mais vem por aí? Possivelmente um smartphone. E se o bilionário CEO Jeff Bezos conseguir o que quer, vem também a entrega de produtos por drones não tripulados.

 

Mas tem uma coisa sobre a qual Bezos não tem falado: a AmazonSupply, site de comércio eletrônico que tem como alvo o mercado de atacado e distribuição, o qual, embora não seja muito chamativo, é extremamente lucrativo. O silêncio dele surpreende, em especial porque o site tem potencial para se transformar no lance mais importante da história da empresa, desde que ela começou com a venda de livros. Até hoje, Bezos falou somente 28 palavras em público sobre a AmazonSupply, descrevendo-a de passagem como “uma categoria incrível” durante a assembleia anual da empresa em 2012.

 

“Você pode comprar motores industriais, flanges, válvulas, fixadores, materiais, artigos de limpeza”, disse ele. E parou por aí, passando em seguida a contar para os acionistas, com orgulho, que o maior gummy bear (bala de goma em forma de ursinho) do mundo – um monstro açucarado de 32 quilos – estava à venda na Amazon.com. Talvez a falta de destaque seja proposital, parte de um lançamento secreto, ou talvez Bezos simplesmente ache que vender luvas de borracha a dentistas seja algo sem grande valor do ponto de vista das relações públicas.

 

Qualquer que seja o motivo real, os atacadistas estão levando a ameaça a sério, e é fácil entender por quê. Enquanto, segundo o mais recente Censo dos Estados Unidos, os varejistas do país arrecadaram mais de US$ 4 trilhões em receitas, os atacadistas embolsaram US$ 7,2 trilhões com a venda de todo tipo de produto, de bicos de Bunsen a cartuchos de impressão. O que é ainda melhor para a Amazon: quase todos os 35 mil distribuidores dos Estados Unidos são empresas regionais e familiares com receitas de até US$ 50 milhões, sendo que apenas 160 têm faturamento anual superior a US$ 1 bilhão. “Esse setor é, em grande parte, ignorado”, afirma Dirk Van Dongen, presidente da Associação Nacional de Atacadistas e Distribuidores. “Você pode passar a vida inteira sem se lembrar dele nenhuma vez.”

 

Enquanto isso, a Amazon registrou receitas de mais de US$ 74 bilhões no ano passado, vendendo desde camas até tempo de servidor e utilizando uma estratégia semelhante a um vírus, a qual privilegia a oportunidade e a ruptura, em detrimento da lucratividade no curto prazo. Quase idêntica ao site que é o carro-chefe da empresa, embora sem os anúncios dos onipresentes leitores digitais Kindle, a AmazonSupply.com foi lançada sem alarde em abril de 2012, com 500 mil itens à venda.

 

Dois anos depois, o site ainda está oficialmente em formato beta, e a lista de produtos cresceu para mais de 2,2 milhões. São 17 categorias de produtos que passam por ferramentas, materiais de construção e decoração e artigos de limpeza. O estoque inclui desde pacotes com 12 latas de suco de frutas até tubos de aço inoxidável. Se 2,2 milhões de produtos não parece em si um número impressionante, basta pensar que um atacadista típico vende algo em torno de 50 mil produtos on-line.

 

“A questão não é se a AmazonSupply vai ser uma ameaça”, explica Richard Balaban, que estudou o site para a empresa de consultoria em gestão Oliver Wyman. “A questão é quais clientes, ocasiões de compra e categorias serão atacados primeiro.”

 

A gênese da AmazonSupply se deu em 2005, com a aquisição, pela Amazon, da SmallParts.com, empório on-line que se anunciava como “a loja de ferragens para pesquisa e desenvolvimento”. O preço de compra nunca foi divulgado. “Para nós, foi uma oportunidade de saber mais sobre nossos clientes empresariais”, diz o vice-presidente de B2B e da AmazonSupply, Prentis Wilson. “Quando desenvolvemos nossa seleção, lançamos a AmazonSupply.”

 

Ele não diz quanto a Amazon está gastando – e, provavelmente, perdendo – com o empreendimento. No entanto, apesar de todos esses bilhões de receitas, a empresa como um todo tem previsão de prejuízo operacional de até US$ 455 mi–lhões para o próximo trimestre. Essa aversão aos lucros pode estar começando a afastar os investidores (o preço da ação caiu 9% desde o anúncio, feito em abril, embora o valor de mercado se mantenha na espantosa cifra de US$ 142 bilhões), mas ajudou a construir uma potência em logística e dados que conta com 125 mil funcionários e que conseguiu processar pedidos referentes a 36,8 milhões de itens durante o pico de compras da Cyber Monday, na última temporada de Natal. Foram vendidos incríveis 426 itens por segundo para 185 países.

 

Outra façanha formidável: a empresa recebeu a pontuação mais alta entre 230 das maiores empresas dos Estados Unidos no índice anual de satisfação com o atendimento ao cliente, elaborado pela Universidade de Michigan, e há dez anos está entre as dez primeiras colocadas. “Nós não vemos problema em plantar as sementes e esperar que virem árvores”, disse Bezos à FORBES para uma matéria de capa em 2012. “Nosso foco não é no próximo trimestre, e sim no que vai ser bom para os clientes.”

 

O desenvolvimento da Amazon Web Services, que Bezos lançou em 2006, diz muito sobre as prováveis ambições da Amazon para a AmazonSupply. Depois de elaborar a infraestrutura tecnológica necessária para tocar a Amazon.com, Bezos criou uma divisão de B2B que permitiu a outras empresas utilizar o excedente de poder digital da Amazon. Hoje, a Web Services domina o setor de computação na nuvem, atendendo a clientes que vão da Nasa à Pfizer e obtendo receitas estimadas em US$ 3,2 bilhões no ano passado, graças a um crescimento ainda mais acentuado do que o da vitrine principal da Amazon.

 

“Se você analisar como eles estão ganhando dinheiro neste exato momento, vai ver que não é vendendo pasta de dentes Crest para você e para mim”, explica Bruce Cohen, sócio sênior da consultoria em gestão Kurt Salmon. “É com a computação na nuvem, com esses servidores enormes. Eles não estão ganhando dinheiro com a parte mais chamativa dos negócios, como o streaming de vídeo ou a venda de coisas bacanas.”

 

Wilson é o general de Bezos para o atacado. Belos traços, cabelos escuros e 43 anos de idade, ele entrou na Amazon em 2011. Veio da Cisco Systems, locomotiva de redes e data centers, onde era responsável pela prospecção de materiais e supervisão de fornecedores. Wilson agora trabalha em Seattle e supervisiona os suprimentos industriais e científicos de toda a Amazon, bem como essa nova divisão. Ele não revela quantos funcionários da Amazon estão trabalhando só na AmazonSupply no momento, mas basta dar uma espiada no site de recrutamento da divisão para ver como são altas as ambições da varejista eletrônica para sua atividade de atacado. Sob o título “Nosso objetivo é fornecer tudo que for necessário para reconstruir a civilização”, são oferecidos por volta de 40 empregos, inclusive o de engenheiro de desenvolvimento de software e o de “especialista em marca” – profissional que deverá se tornar um expert nas ferramentas do ramo de um fabricante específico, seja ele produtor de canos ou de material de escritório.

 

A divisão está em franco progresso. A título de exemplo, se não fosse pela AmazonSupply, a maioria dos equipamentos científicos e industriais que ela tem à venda – como centrífugas, micrômetros e cilindros de ar – só estaria disponível em distribuidores especializados. Mas poucos são capazes de concorrer com o enorme estoque dela, sem mencionar o site de fácil navegação e a entrega em 24 horas, que há muito tempo são atrativos da Amazon. “Se você pensar em um cientista de laboratório, um Ph.D. que esteja tentando descobrir o próximo medicamento contra o câncer num laboratório que exigiu altos investimentos, qualquer tempo que ele gaste tentando achar um produto novo é dispendioso”, diz Wilson.

 

Os peixes pequenos tampouco conseguem concorrer com a infraestrutura e a imensa quantidade de dados de consumidores da AmazonSupply. A empresa não revela detalhes, dizendo apenas que a AmazonSupply “utiliza todos os recursos de logística e de processamento de pedidos da Amazon”. Nos Estados Unidos, isso corresponde a uma rede de 40 centros de processamento de pedidos, número este que vem crescendo. Ao mesmo tempo, enquanto varejistas como a Home Depot e a Lowes (e a própria Amazon, no início) são avessos a estocar produtos que não vendem rapidamente, a AmazonSupply, com seus enormes recursos financeiros, tem estado mais propensa a manter um estoque que não necessariamente vai sair voando das prateleiras.

 

Especialistas do setor calculam que a empresa estoca mais de 50% do que oferece no site em um dado momento. “Eu incentivo meus clientes a tornarem- se processadores de pedidos terceirizados para a AmazonSupply”, diz Dick Friedman, consultor que ajuda distribuidores tradicionais a desenvolver estratégias para concorrer com a AmazonSupply. “Por que não? O único problema é que, se o produto vender muito bem, a AmazonSupply vai passar a mantê-lo em estoque e tirar a empresa menor da jogada.”

 

“O desafio da distribuição é ter pedidos grandes o suficiente para ganhar di-nheiro”, explica Scott Benfield, consultor de B2B que acompanha o mercado de atacado e distribuição há 20 anos. “É um ramo de margens muito baixas, 2% a 4% para as empresas tradicionais do setor.” A escala da Amazon é do tamanho ideal para concorrer nesse tipo de operação de volumes altos e margens baixas. Um estudo do Boston Consulting Group descobriu que os preços dos itens comuns na AmazonSupply são cerca de 25% mais baixos do que os preços no resto do setor.

 

Para seduzir os fabricantes, a empresa também incluiu recursos que possibilitam a eles exibir os produtos em vídeos na internet, postar desenhos de CAD que podem ser baixados e aprender com os comentários dos usuários. Os compradores, que vão de especialistas em impressão 3-D a mecânicos de automóveis, evitam as interações humanas – as quais podem ser incômodas ou insubstituíveis, dependendo do representante de vendas – que continuam a fazer parte da maioria dos negócios de atacado e distribuição.

 

“É algo bastante coeso em comparação com 500 representantes de vendas diferentes”, afirma Wilson. Ele acrescenta que os fabricantes vêm relatando um pequeno aumento da venda de produtos que não eram tão procurados antes. “Basta disponibilizar o produto na Amazon, e as pessoas sabem que ele existe”, diz ele. “Nós não temos medo de manter um item em estoque. Isso tem muito valor. Gera confiança.”

 

 

Se há uma pedra no sapato da Amazon, é a gigante de suprimentos industriais W.W. Grainger, sediada em Chicago. Com receitas de US$ 9,4 bilhões, ela é, sem dúvida, a empresa a ser vencida, pois controla cerca de 6% de todo o mercado B2B. Com uma operação de comércio eletrônico robusta, iniciada em 1995, o site é engenhoso e fácil de usar; ele oferece entrega em 24 horas para a maioria dos itens, além de comentários dos usuários e sugestões baseadas nas suas compras e buscas anteriores.

 

A Grainger vende ferramentas para manutenção e conserto desde 1927; de lá para cá, a empresa cresceu a ponto de ter mais de 700 filiais regionais de vendas e 33 centros de distribuição. Ela ainda ganha a maior parte do dinheiro fora da internet. Em 2013, o faturamento de seu comércio eletrônico superou os US$ 3 bilhões, ou 33% da receita total da empresa.

 

 

A Grainger e algumas de suas concorrentes especializadas – como a Cardinal Health, na área de suprimentos médicos – estão bem estabelecidas nas funções de apoio de corporações e hospitais, onde a atividade está profundamente enraizada nos processos. No Nebraska Medical Center, por exemplo, a Cardinal assumiu o custo inicial de US$ 4,5 milhões em estoque, liberando os recursos financeiros do hospital. Depois, tomou conta de toda a cadeia de suprimentos da instituição, desde os trabalhadores de carga e descarga e o departamento de contas a pagar até a administração de todos os contratos com fornecedores e o acompanhamento da distribuição, do caminhão ao leito hospitalar. A Cardinal cobra do hospital de acordo com o uso. “As empresas elaboraram processos para eles”, diz Cohen. “Assim como algumas organizações terceirizam todo o seu departamento de informática.”

 

Porém, meros dois anos após ter entrado no jogo, a AmazonSupply já superou a Grainger em termos de volume de estoque on-line, com seus 2,2 milhões de produtos à venda fazendo sombra ao 1,2 milhão desta última. A AmazonSupply pode dar uma mordida nos negócios de volumes altos e margens baixas da Grainger, se é que já não fez isso. Ela vai vender toneladas de béqueres, por exemplo, ou de papel para cópias. Trata-se de produtos que o setor chama de “itens de reposição”, e são os que estão mais ao alcance da Amazon. Um pote da supercola de alta resistência Gorilla Glue sai por US$ 159 na AmazonSupply. No site da Grainger, a mesma embalagem custa US$ 173,25.

 

Qual é a opinião da Grainger sobre a AmazonSupply? O CEO, Jim Ryan, recusou os pedidos para dar uma entrevista, mas um porta-voz disse: “Apesar de não comentarmos especificamente sobre outras empresas, é importante observar que o modelo de negócios multicanal da Grainger e nosso público-alvo apresentam diferenças significativas em relação à maneira pela qual os varejistas que só atuam on-line atendem o mercado”.

 

Nem todo mundo acredita na aparente despreocupação da Grainger. “Eles estão planejando e não querem que a Amazon saiba o que estão pensando”, comenta Barry Lawrence, responsável pelo curso de distribuição industrial da Universidade Texas A&M. Ele prevê que a Grainger aumente a facilidade de fazer negócios com a empresa por meio de tecnologias como aplicativos móveis para gerentes de compras e por meio de programas de fidelidade mais robustos, assim como a United Airlines usa programas de milhagem para dissuadir você de usar a Expedia. “A Grainger vai construir algumas barreiras de segurança contra a Amazon”, diz ele.

 

Mas isso é com relação à Grainger. Para o restante dos mais de 34 mil atacadistas e distribuidores com faturamento anual na faixa dos milhões, e não dos bilhões de dólares, o futuro como concorrentes da AmazonSupply, que cresce em ritmo acelerado, pode ser desolador. Prestar serviços altamente personalizados e de valor agregado é uma linha de defesa. E os especialistas do setor parecem ter alguma esperança com base na ideia de que a Amazon não tem como lidar com as necessidades de cada cliente em uma parte complexa e altamente segmentada da economia. No ano passado, a consultoria em gestão Oliver Wyman analisou a invasão do atacado pela Amazon. Entrevistando 25 CEOs de empresas de distribuição bilionárias ao longo de alguns meses, Balaban, da consultoria, descobriu que um terço deles não acredita que a concorrência do comércio eletrônico vá prejudicar seus negócios, em parte “porque o produto deles é complicado demais para uma novata, como a Amazon, armazenar e comercializar”.

 

Por exemplo, será que a Amazon vai querer manusear gases industriais, como dióxido de carbono, para bares e máquinas de refrigerantes do McDonald’s? A Amazon pode vender luvas e óculos de proteção, mas é muito mais caro entregar tanques grandes e feiosos de acetileno ou tambores de 208 litros de acetato.

 

“As empresas que lidam com produtos que são perigosos, exóticos ou que requerem manuseio especializado demorarão mais para ficar vulneráveis à Amazon”, explica Balaban, que é coautor do relatório da Oliver Wyman. Para contra-atacar, algumas empresas estão acrescentando serviços que esperam que a AmazonSupply não possa copiar. Veja a Valin Corp., uma distribuidora californiana fundada há 40 anos, que já teve como especialidade a venda de chips de computador. Desde 2010, a empresa está voltada ao setor de petróleo e gás, de rápido crescimento. Ela manuseia e mede a produção de poços de petróleo de superfície, entre outros fluxos de receitas relativamente novos, referentes a montagem e fabricação. “A Amazon nunca vai entrar no ramo de manutenção de campos petrolíferos”, diz Benfield, o consultor de B2B. “Ela não vai mandar engenheiros.”

 

Então, será que eles estão certos? Assim como tudo que se relaciona à AmazonSupply, Wilson é lacônico ao falar de quais serviços ela vai deixar para a concorrência e quais ela vai tentar prestar. Ela vai começar a vender tanques de oxigênio? Ou a transportar madeira para canteiros de obra? Wilson se limita a dizer o seguinte: “Nós exploraríamos qualquer item para garantir que somos capazes de fornecê-lo”.

 

Segundo Balaban, os rivais devem estar prontos para o pior. “Se a sua empresa ainda não tem um plano para sobreviver e prosperar no novo ecossistema”, adverte “talvez você tenha menos tempo do que imagina”. Pergunte à sua livraria local.