Uber quer estar no centro de toda a mobilidade humana

1 de maio de 2017
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Travis Kalanick, o incansável motor do Uber (Getty Images)

Vestindo camisa polo cinza, calças de algodão cinza combinando e tênis pretos, Travis Kalanick se fecha numa sala de conferências, onde caminha como um técnico de basquete, alternando goles de café e porções de castanhas e frutas secas que ele pega num copinho de papel. Em volta da mesa, seis jovens apresentam ao cofundador e CEO do Uber os primeiros resultados de uma iniciativa crucial: uma nova versão do aplicativo, lançada três semanas antes. O que os usuários veem como simples ajustes no design tem impactos profundos nos downloads, no uso e nas classificações do app, nos tempos de chegada, nas taxas de retenção, nos tempos de carga, na distribuição de usuários que optam pelo UberPool em vez do UberX e em muitos outros aspectos. Esses impactos variam conforme o país e o tipo de telefone que o passageiro usa.

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É um supremo desafio de lógica. Por 80 minutos, Kalanick esquadrinha cada gráfico, questionando as premissas. “Isto pode ser uma questão de medida ou um problema real”, diz, apontando para um indicador que parece um mistério. Pega repetidamente seu iPhone para verificar ele mesmo como esses detalhes poderiam afetar os usuários reais, alternando entre satisfação e leve aborrecimento. Em determinado momento, diz que, sem dados reais sobre um recurso específico, “a emoção vai dominar o dia”. Para ele, isso é muito ruim.

Esse processo, um dos blocos construtivos fundamentais da máquina do Uber, é chamado de “jam session”. As jams determinam como os problemas são transformados em ideias, como as ideias são transformadas em produtos e como os produtos são analisados levando-se em conta seu impacto na obsessão predominante de Kalanick: a eficiência. As jams também são a maneira pela qual ele aborda quase todos os aspectos importantes da experiência do Uber.

Forbes calcula que os prejuízos tenham chegado a US$ 2 bilhões

Aos 40 anos de idade (e número 64 na lista FORBES de Pessoas Mais Poderosas do Mundo), ele é uma das figuras mais comentadas no Vale do Silício e tem sido descrito de diversas formas, a maioria nada lisonjeira. Implacável e antiético, gênio do mal e imprudente, babaca e cretino. Há um grão de verdade em todas essas descrições. Mas elas não abarcam aquele “algo especial”, o fator de unificação que explica como Kalanick levou o Uber a se tornar a startup mais rica da história, com avaliação de US$ 68 bilhões.

Kalanick acredita que sua função é impelir o Uber para a frente através de uma série de obstáculos lógicos que devem ser suplantados interminavelmente. “Cada problema é fascinante e tem suas próprias nuances. Você o resolve hoje, mas tenta resolver com uma arquitetura, construindo uma máquina para resolver problemas semelhantes depois”, diz Kalanick. “E aí você passa ao próximo.”

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Taxistas de Nova York em protesto contra a chegada do Uber (Getty Images)

Sempre há um próximo – e esses próximos vão ficando maiores. É isso que faz do Uber uma das empresas mais interessantes do mundo e explica por que Kalanick é capaz de levantar tanto dinheiro – US$ 16 bilhões em capital e dívida até agora – sem ter lucro nem uma IPO à vista. O modelo de negócios do Uber como um intermediário descomplicado (para transporte de passageiros, no caso) é tão poderoso que virou clichê. Mais de cem startups foram descritas como “o Uber de alguma coisa”. Uma das poucas empresas do Vale do Silício que não estão tentando ser o Uber de algo é o próprio Uber. A comparação mais apropriada é com a Amazon, que começou como sinônimo de venda de livros online e se metamorfoseou na megaloja de varejo da internet. Kalanick já não está interessado em apenas providenciar transporte para você: ele está posicionando o Uber no centro de toda a mobilidade.

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Se uma coisa se move, Kalanick quer participar dela. Menos de sete anos depois do lançamento, o Uber já está reformulando o modo pelo qual as cidades pensam o transporte público, os estacionamentos e os congestionamentos – e o que a geração do milênio pensa sobre ter um carro. E ele está só no começo. “O mercado de carros, o transporte terrestre do consumidor – você pode pensar em US$ 5 trilhões ou US$ 6 trilhões em nível mundial”, diz.

Nos últimos dois anos, o Uber não só ampliou tremendamente suas ofertas de compartilhamento de viagens no mundo, como também entrou nos serviços de entrega, como o Eats (comida), o Rush (qualquer coisa, com rapidez) e o Freight (fiquem de olho, transportadoras de longa distância). Brincou com façanhas de marketing como o Uber-Chopper (helicópteros), o UberSeaplane e o UberBoat, geralmente durante eventos específicos. Também está investindo a sério nos carros e caminhões autônomos e chegou a propor, à la Elon Musk, um inverossímil projeto de carro voador.

O Uber oferece um cardápio completo de opções de compartilhamento de viagens, como o X, o Pool, o Black, o Select e, em alguns países, o Moto (motocicletas), gastando bilhões para subsidiar motoristas. Segundo os críticos, isso é parte de uma estratégia deliberada para tirar os rivais do mercado – e aumentar os preços à vontade depois disso. FORBES calcula que os prejuízos do Uber tenham chegado a US$ 2 bilhões em 2016, sobre receitas de US$ 5 bilhões. Os lucros são secundários diante do domínio do mercado amanhã.

“Quando eu financiei esta empresa pela primeira vez, não tinha ideia de que um dia estaria ouvindo teleconferências de investidores do setor automotivo”, diz o capitalista de risco Bill Gurley, da Benchmark, conselheiro e um dos primeiros investidores do Uber. “Há muita ansiedade em torno do que esta empresa pode fazer com um dos maiores setores do planeta.”

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Quando adolescente, Kalanick analisava o tráfego nas vias congestionadas do sul da Califórnia, tentando descobrir a faixa ideal para cada situação. Sua formação em ciência da computação na UCLA, apesar de ter desistido do curso, ajudou-o a aperfeiçoar sua mentalidade de resolução de problemas. Ainda na faculdade, criou o Scour, mecanismo de busca multimídia e central de compartilhamento de arquivos – um fiasco.

Em 2009, fundou o Uber com Garrett Camp, colega empreendedor que, pouco antes, tinha recomprado sua antiga empresa, a StumbleUpon. Ela girava em torno de um aplicativo denominado UberCab, que facilitava a reserva de um carro de luxo. Lançado em 2010, o serviço era pouco mais que um brinquedo para Kalanick e seus amigos se locomoverem por São Francisco. Mas logo ele começou a entender como a matemática podia ajudar o Uber a revolucionar não só os serviços de limusines, como também o próprio transporte urbano.

Se os preços caíssem, mais passageiros teriam interesse, o que atrairia mais motoristas à plataforma, o que por sua vez significaria que os tempos de espera diminuiriam, trazendo ainda mais passageiros e ajudando os motoristas a ganharem mais. Desde então, fazer o ajuste fino desse círculo virtuoso virou a obsessão de Kalanick.

O resultado foi a mais rápida ascensão da história do Vale do Silício, à medida que o Uber ultrapassava gigantes como o Google e o Facebook, com a receita superando US$ 1 bilhão no segundo trimestre e uma força de trabalho de mais de 9 mil funcionários e 1,5 milhão de motoristas. O Uber lançou seu aplicativo – muitas vezes atropelando barreiras legislativas e a oposição barulhenta dos taxistas – em cerca de 450 cidades de mais de 70 países. Em um mês, 40 milhões de pessoas fazem uma viagem de Uber, e os motoristas percorrem em conjunto 1,9 bilhão de quilômetros – 35 vezes a distância entre a Terra e Marte.

A primazia da eficiência só aumentou com essa escala colossal. Kalanick, cujo patrimônio líquido FORBES estima em US$ 6,3 bilhões – ele diz que não vendeu nenhuma de suas ações do Uber –, administra tudo isso traduzindo cada componente num problema a ser resolvido. Alguns anos atrás, quando se convenceu de que o mapeamento era uma das tecnologias “existenciais” que o Uber precisava deter, contratou Brian McClendon, funcionário do Google e um dos criadores do Google Earth. “Tudo nessa atividade depende de mapas”, diz McClendon.

Os mapas são de fato essenciais para a iniciativa do Uber de desenvolver carros autônomos em dois anos. Os lances mais célebres de Kalanick nessa área vieram em agosto do ano passado, quando ele anunciou que algumas viagens de Uber em Pittsburgh seriam feitas em carros autônomos (ainda há um motorista no volante para evitar contratempos e para efeito de conformidade com as leis) e que a empresa tinha desembolsado US$ 600 milhões para adquirir a Otto, startup de veteranos do pioneiro grupo de veículos autônomos do Google que vem fazendo rápido progresso com caminhões.

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O que é possível para o Uber agora é praticamente ilimitado. A empresa detém uma reserva financeira sem precedentes, e FORBES acredita que o prejuízo da companhia já atingiu seu ponto máximo. Kalanick pode agora se concentrar em vencer em mercados cruciais, como os Estados Unidos, a Índia e o Brasil.

A transição para os veículos autônomos é uma certeza, não uma hipótese. Os críticos dizem que o fato de o Uber não ter uma unidade especializada na fabricação de carros pode ser seu calcanhar de aquiles, à medida que montadoras como General Motors (em parceria com o Lyft, concorrente do Uber), Ford e Tesla – e talvez outras empresas, como Google ou Apple – ponham em ação, nos próximos anos, veículos autônomos feitos sob medida para serviços de compartilhamento de viagens. Mas é provável que a autonomia plena ainda demore anos e, quando finalmente chegar, as montadoras que quiserem concorrer terão de fornecer grandes frotas para viabilizar os serviços sob demanda, ao passo que o Uber poderá introduzir os veículos autônomos de modo gradual.

Essa é uma vantagem que pode perdurar, pois se prevê que os veículos tradicionais e os autônomos coexistam por anos. Em todo caso, quando os carros autônomos se tornarem realidade, o sistema operacional de mobilidade que Kalanick está desenvolvendo – aquela coordenação perfeita de bits e átomos – será mais crucial do que nunca. “Você tem de quantificar a humanidade, a ação humana no mundo físico”, diz Kalanick. É o tipo de problema frio, lindo e desafiador que mantém motivado o especialista em lógica do Uber.

UBER EM TUDO

O modelo criado por Travis Kalanick vai além do mais conhecido transporte de passageiros em carros de motoristas
“informais”; inclui helicópteros, aviões, barcos, caminhões e bicicletas envolvidos no leva e traz de pessoas e objetos

UBER CHOPPER
(helicópteros)

Conhecido como UberCopter no Brasil, foi lançado em junho de 2016 em São Paulo, com preço mínimo promocional de R$ 66

UBER EATS
(delivery)

Estabelece a integração entre restaurantes e motoboys cadastrados que fazem a entrega de comida no lugar onde o usuário indicar

UBER RUSH
(entrega rápida de qualquer coisa)

A proposta é envolver motoristas, ciclistas, motoboys e até mesmo mensageiros a pé – o que importa é a rapidez do serviço

UBER FREIGHT
(transportes de longa distância)

Transporte de cargas, com o objetivo de desenvolver tecnologias de navegação para aplicação em caminhões autônomos

UBER SEAPLANE
(hidroavião)

Durante a feira Art Basel em Miami Beach, em novembro, um hidroavião oferecia voos gratuitos aos visitantes, em ação de marketing da empresa

UBER BOAT
(barco)

Foi lançado em 2015 em Istambul para fazer a travessia do Estreito de Bósforo, que liga o lado europeu ao lado asiático da cidade. A viagem custa cerca de US$ 19, mais caro que os barcos públicos que fazem o trajeto