Sucesso dos vaporizadores reformula o mercado tabagista e preocupa gigantes do meio

17 de setembro de 2016
Vaporizadores (Getty Images)

Setor de vaporizadores está crescendo no mundo e já começa a preocupar diferentes grupos (Getty Images)

No começo de 2008, Jan Verleur estava morando na periferia de Praga e trabalhando num romance sobre três empreendedores que tinham fracassado na internet e estavam investindo seu capital minguante numa rede de tráfico de ecstasy. Não era exatamente autobiográfico, mas Verleur, hoje com 36 anos, estava escrevendo a partir de sua experiência com empreendimentos malsucedidos. O mais recente tinha sido uma ambiciosa empresa de pornografia que perdeu 22 milhões de dólares dos investidores, inclusive 1,6 milhão de dólares dele mesmo.

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Um dia, ao pegar um maço de cigarros numa loja de conveniência vietnamita, reparou numa caixa de cigarros eletrônicos. Experimentou um, e vazou um líquido em sua boca. “A tecnologia não estava pronta para o mercado”, diz ele, “mas a ideia me pareceu incrível”. Logo em seguida, Dan Recio, seu amigo e colega na empresa de pornografia, persuadiu-o a voltar aos Estados Unidos e fazer mais uma tentativa de ganhar dinheiro satisfazendo outro desejo humano.

O incipiente mercado de cigarros eletrônicos estava escancarado. Os custos das startups eram baixos, e a regulamentação era inexistente. Os vaporizadores pareciam prontos para crescer a ponto de se tornarem um imenso mercado mundial de um produto mais saudável. Inventados em 2003 por um farmacêutico chinês cujo pai tinha morrido de câncer de pulmão, os cigarros eletrônicos usam baterias de íon de lítio para aquecer um líquido com nicotina, transformando-o num vapor que contém apenas traços de alguns dos mais de 60 agentes cancerígenos contidos no cigarro comum. A VMR, empresa de Verleur e Recio sediada em Miami, esperava surfar numa onda linda.

Mas o setor mudou drasticamente nos últimos seis anos, desde que Verleur e milhares de outros empreendedores embarcaram nele. A demanda de cigarros eletrônicos mostrou-se menor do que a esperada de início. Ela cresceu praticamente do zero, uma década atrás, para 3,7 bilhões de dólares nos EUA no ano passado, segundo estimativas da ECigIntelligence, empresa britânica que fornece informações ao setor. Porém, a Nielsen relata que as vendas em lojas de conveniência e grandes varejistas, como o Walmart, começaram a diminuir, tendo encolhido 6,2% nas 52 semanas anteriores a 26 de março. A Nielsen não capta as vendas on line, nem as realizadas nas 10 mil lojas de cigarros eletrônicos dos Estados Unidos, mas, somente no ano passado, esses canais permaneceram estáveis para a VMR, que registrou uma receita de 50 milhões de dólares em 2015. No cômputo geral, a venda de cigarros eletrônicos é pífia em comparação com os 92 bilhões de dólares do mercado de cigarros tradicionais dos EUA.

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Muitos fumantes experimentam cigarros eletrônicos uma vez e depois largam, decepcionados com o fato de o vapor não proporcionar o mesmo sabor e a mesma sensação que a fumaça real causa na boca e na garganta, e de a nicotina levar mais tempo para agir. “Há muita experimentação e muita rejeição”, afirma Vivien Azer, analista de tabaco da Cowen and Company, de Nova York.

Ao mesmo tempo, são intimidantes as forças reunidas contra os muitos pequenos concorrentes que estão em busca de um pedaço desse bolo menor do que o esperado. Os empreendedores da vaporização enfrentam um monstro de três cabeças: as grandes empresas de tabaco, a agência administradora de alimentos e medicamentos dos EUA (FDA) e um exército de fanáticos antitabagistas. Esse monstro tem capacidade para exterminá-los, e está mais do que disposto a isso.

As gigantes do tabaco, como a Reynolds e a Altria, vêm aproveitando seus gordos balanços patrimoniais, suas enormes forças de vendas e seus canais de distribuição consagrados para entrar no mercado de cigarros eletrônicos, e já são donas das quatro principais marcas dos Estados Unidos. Os especialistas dizem que os aparelhos são inferiores e não chegam a ameaçar o produto principal das grandes empresas, ou seja, os cigarros tradicionais.

Mas há algo mais agourento para concorrentes como Verleur: em breve, a FDA deve anunciar regulamentos que tratarão os cigarros eletrônicos como produtos de tabaco. Se o projeto de norma publicado pela FDA em 2014 for aprovado, milhares de produtos do gênero terão que passar por um penoso processo de pré-aprovação que, segundo os fabricantes de cigarros eletrônicos, vai lhes custar até 2 milhões de dólares por item. (A FDA diz que essa cifra é 330 mil dólares.) A VMR, que vende principalmente on line e não precisa se limitar ao que caberia num display de loja de conveniência, oferece mais de 500 tipos de líquidos, vaporizadores e acessórios para cigarros eletrônicos, de modo que o cumprimento dos novos regulamentos custaria entre 175 milhões e um bilhão de dólares. Daniel Walsh, CEO da Purebacco, fabricante de Michigan que vende mais de 200 variedades de líquido para cigarros eletrônicos, chama a iminência dessas regras de “vapocalipse”.

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A FDA vem sendo incentivada por grupos antitabagistas, como a Associação Americana do Pulmão e a Campanha por Crianças Sem Tabaco, que adotaram uma linha dura contra os vaporizadores. Ignorando ou desprezando o fato de que milhões de fumantes usam as versões eletrônicas para largar ou reduzir o consumo de cigarros, o lobby antitabagista tem obsessão pelos riscos mínimos que os vaporizadores apresentam à saúde.

Preferem que os aspirantes a ex-fumantes fiquem com os adesivos e as gomas de mascar, que só funcionam em 7% dos casos. Cerca de 70% dos fumantes norte-americanos dizem que querem largar o cigarro, e 480 mil pessoas morreram de doenças relacionadas com o tabagismo nos EUA no ano passado.

Um consultor do setor de tabaco, que pediu para não ser identificado por receio de irritar seus poderosos clientes, comentou recentemente que as advertências feitas contra os cigarros eletrônicos por um famoso professor de saúde pública antitabagista são “a melhor campanha de relações públicas em prol dos cigarros, no momento”.

Joel Nitzkin, que já foi dirigente da Força-Tarefa de Controle de Tabaco da Associação Americana de Médicos Sanitaristas, e hoje é membro de um think tank de livre mercado chamado R Street Institute, dá sua opinião sobre a FDA: “Eles acham que estão numa missão dada por Deus. A parte assustadora é que vão manter os cigarros como principal produto de nicotina da sociedade norte-americana”. E tem mais, diz ele: “Estão se recusando a informar o público e a permitir que os fabricantes e fornecedores informem sobre a diferença entre os riscos dos cigarros eletrônicos e os dos cigarros de tabaco”. De fato, mesmo que uma empresa de vaporizadores seja capaz de passar pela barreira dos regulamentos propostos pela FDA, ela não poderá afirmar que seus produtos oferecem menos perigo que os cigarros tradicionais.

Ninguém está insinuando que os cigarros eletrônicos são totalmente seguros. Eles fornecem nicotina, que pode interferir no desenvolvimento do cérebro dos jovens, prejudicar um feto em desenvolvimento e apresentar riscos a pessoas com doenças cardiovasculares. O vapor contém por volta de uma dúzia dos agentes carcinogênicos encontrados na fumaça do tabaco, embora em teores muito baixos. Um relatório publicado em agosto de 2015 pela Saúde Pública da Inglaterra, divisão do serviço de saúde do Reino Unido, indicou que os cigarros eletrônicos são 95% mais seguros do que os tradicionais.

Em abril, a Faculdade Real de Medicina mencionou essa cifra e conclamou os fumantes a mudar para os vaporizadores. Mas os dados britânicos não persuadiram os antitabagistas, como a vice-presidente assistente de defesa nacional da Associação Americana do Pulmão, Erika Sward. “Os cigarros são a opção atômica”, diz. “Isso não torna a guerra convencional menos mortal.”

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Desde que Verleur abriu a VMR, o mercado de cigarros eletrônicos estratificou-se em dois segmentos amplos: os similares (cigalikes), que imitam os cigarros tradicionais, e os modificados (mods), que são mais fortes e dão maior satisfação. As diferenças são notáveis. Os similares, entre os quais estão o VUSE (Reynolds), o MarkTen (Altria), o blu (Imperial Tobacco) e o Logic (JTI), são as Budweisers e Millers do mercado de vapor, vendidos em lojas de conveniência e redes de varejo. São feitos de modo a se parecerem com cigarros: têm uma bateria longa e cilíndrica que constitui o corpo, um cartucho de fluido no lugar onde ficaria o filtro e, na ponta, um LED que brilha durante o uso. Um kit inicial de VUSE custa 10 dólares e inclui um vaporizador, um carregador de bateria e um cartucho de líquido que equivale, aproximadamente, a um maço de cigarros.

Os modificados estão mais para as cervejas artesanais. Há milhares deles, e costumam ser alterados para acomodar baterias mais potentes, que geram um volume maior de vapor e propiciam uma experiência mais satisfatória. A maioria é produzida por empresas familiares e pequenas, como a VMR.

Hoje em dia, Verleur vive para lá e para cá, entre a China e a Flórida. Mora metade do ano num hotel em Shenzhen, onde a VMR tem 60 funcionários de período integral e contratos com 3.000 trabalhadores em duas fábricas. O resto do tempo, ele fica em Miami, onde diz que está “sem teto”, depois de se separar da mãe de seu terceiro filho. (“Sou uma pessoa com a qual é difícil manter um relacionamento.”) Às vezes, ele dorme num quarto ao lado de seu escritório, onde faz teleconferências com a China às 3 horas da madrugada, ou fica num apartamento da empresa nas redondezas. Mantém a mala pronta na traseira de seu Jeep, que é revestido por uma camada de Kevlar bronze à prova de balas. “Comprei porque achei o visual bacana.”

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Verleur diz ter esperança de que os regulamentos da FDA acabem por ser abrandados. (Em abril, o Comitê Orçamentário da Câmara aprovou uma medida que isentaria do dispendioso processo de aprovação pré-comercialização os produtos de vaporização do mercado, até os regulamentos assumirem sua forma definitiva.) Contudo, ele tem certeza de que, em breve, o lançamento de produtos novos e melhores ficará proibitivamente caro para a VMR e outros concorrentes pequenos. “As grandes empresas de tabaco querem paralisar a inovação e garantir que ninguém apareça com algo que derrube seu império”, diz.

O próprio Verleur continua escravo do império. Os vaporizadores ajudaram-no a reduzir o consumo de cigarros, que era de dois maços por dia. Mas ele ainda fuma. “Fumo quatro ou cinco por dia”, diz ele. Sua marca? “Marlboro, minha arqui-inimiga.”