No meio de uma crise, de saúde e econômica, como a que estamos vivendo, a quais exemplos de superação nos apegamos? Como sobreviver, como se reinventar rapidamente, de onde tirar força e como usar estratégias para driblar incertezas, medos, angústias e toda o emocional que nos faz parte? Aqui, no mundo do vinho, a gente busca olhando pra quem sofreu muito mais, pois a perspectiva e um espírito elevado frente às vicissitudes da vida são as maiores armas.
A região de Champagne, por ser campo aberto, foi passagem para muitos mercantes e também muitas guerras. Sem barreiras como montanhas e rios, essa região, no limite da determinação térmica para produção de vinhos, sofreu com desafios e mudanças constantes até atingir sua glória. Esse espírito de resistência e tenacidade, tornaram-se evidentes devido às dificuldades que superou. Por mais doída que seja uma dificuldade, ela fortalece! E essa força também teve de lutar contra mãe natureza, saques, pestes, mortes, miséria. E recomeçar.
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Sob domínio romano, Champagne foi protegida quando eles a regiam, por volta de 50 d.C. até o colapso em 461 d.C. Os habitantes aceitaram seguir as “leis” romanas em troca de proteção contra francos, vândalos, góticos e teutões, entre outros. Foi nesse período que os romanos descobriram o potencial das pedreiras de giz subterrâneas, as “crayères” que hoje são as caves das conhecidas Maisons de Champagne, e fizeram as construções na cidade. O contato com o ar endurece este giz, que subterraneamente é mole e úmido, então a técnica era fazer pequenas aberturas e ir escavando em formato de pirâmide. Foram escavadas aproximadamente 250 “crayères” que atingiram até 30 metros de profundidade. Em distância, eram 200 quilômetros. Para se ter ideia, a produção anual atual é de 302 milhões de garrafas de champanhe, que ficam estocadas nessas “crayères” até sua liberação ao mercado, o que pode variar de dois a 30 anos. Isso além dos vinhos de reservas estocados constantemente, que correspondem ao equivalente a 227 milhões de garrafas. É capital de giro que gira em outra velocidade.
Depois da queda do império romano, Champagne foi devastada. Épernay foi saqueada 25 vezes! Os viticultores se abrigavam nas “crayères” (o hotel chamado Les Crayères, em Reims, que era a casa de Mme. Pommery, vale a visita ou estadia). Nas épocas em que as guerras eram longas, os habitantes ficavam constantemente no subterrâneo, sem luz a não ser de velas, sem noção de dia e noite. Escolas e igrejas foram organizadas nesse subterrâneo e, quando se visita essas caves, hoje em dia, é possível ver os escritos, os desenhos e as marcas desse período negro.
Sem os romanos e com todas as incertezas, a igreja tomou poder da viticultura e da ordem da sociedade. As pessoas precisavam de uma fonte de estabilidade e união. A gente reza, certo? Pede pra quem seja, pois a fé e a esperança, seja qual for a sua opção, trazem conforto e positividade nas perspectivas. Nos momentos difíceis, nos lembramos disso, assim como quando estamos doentes de cama e falamos que vamos cuidar da saúde depois. E, na maioria das vezes, esquecemos. Às vezes, não entendo porque a raça humana demora tanto para aprender. Mas antes tarde do que nunca!
Nessa época, o vinho era tinto de um tom claro, turvo e doce. O champanhe que conhecemos só apareceu por volta de 1600 e vem evoluindo desde então até o que bebemos atualmente.
A primeira estratégia foi associar o vinho a poder, realeza, privilégio e celebração quando, durante 600 anos 27 reis foram coroados na catedral de Reims. Outra divulgação foi nas feiras de tecidos, especiarias, lã e couro, que aconteciam duas vezes ao ano por mais ou menos 49 dias e nas quais se bebia champanhe. Isso já na Idade média por volta do ano 900.
Mas, então, houve a guerra com a Inglaterra, quando o Rei e a “House of Valois” queriam controlar a coroa francesa, a guerra dos cem anos! Desgraça geral. Depois, veio a reforma protestante. Miséria de novo. Guerras internas levaram Champagne a oscilar mais do que a bolsa de valores. Entre 1650 e 1850, houve três períodos de extremo frio, uma espécie de mini era do gelo. Em contrapartida, vieram as grandes descobertas científicas: Chaptal, Pasteur e Lavoisier, entre muitos outros.
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, outro baque arrasador. Das 13.806 casas existentes em Reims, sobram apenas 17 inteiras e 5.000 parcialmente destruídas depois dos quatro anos de conflito. Na Segunda Guerra, as batalhas não aconteceram nos vinhedos, ufa! Mas, os viticultores ficaram sem fôlego para recomeçar. Foi nesse momento que surgiu o Comité Interprofissionel du Vin de Champagne para mostrar aos alemães a união deles, mesmo com vários líderes tendo sido enviados a campos de concentração na tentativa de baixar a moral. E todo mundo se escondendo nas “crayères”, lotação geral. Só faltava coronavírus nessa história, já pensou? Sem falar na phylloxera, uma praga que dizimou todos os vinhedos, antes dessas guerras.
Ou seja, coronavírus ficou pequeno.
E Champagne, onde está hoje? A região que produz o vinho da celebração, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, a bebida que eleva o ânimo e que remete as estrelas. “I’m drinking stars”, Dom Perignon disse, lembra? “Estou bebendo estrelas!”
Região nomeada pela Unesco como patrimônio mundial, sua produção anual gera € 4,9 bilhões em vendas. Possui somente 4% em território viticultor, mas é responsável por 20% da receita no setor, sendo o vinho mais exportado da França. Além disso, as vinícolas locais reduziram em 20% a emissão de carbono por garrafa nos últimos anos, reciclam 100% da água utilizada e 90% do lixo que produzem.
Champagne celebra suas derrotas e suas vitórias. Nos momentos difíceis: união e fé. Nos momentos de vitória: economia e respeito ao meio ambiente. Humildade.
Que tenhamos esta resiliência, esta persistência, esta capacidade de crescer, ver adiante, unirmos e sermos mais fortes. Que esta bebida nos faça lembrar da sua história, da nossa história e do real sentido da celebração. Especialmente da vida. Aquela, dentro de você!
Tchin tchin.
Carolina Schoof Centola é fundadora da TriWine Investimentos e sommelière formada pela ABS, especializada na região de Champagne. Em Milão, foi a primeira mulher a participar do primeiro grupo de PRs do Armani Privé.
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