Carla Bolla: Todos à Mesa

4 de dezembro de 2020
Reprodução

Banquete de casamento, pintura de Sandro Botticelli (1483)

Quando imaginamos uma cena de reunião entre amigos e família, ou mesmo um momento ideal para tratar de negócios, qual é a primeira imagem que nos vem à cabeça? Sem dúvida, todos à mesa! Com o estabelecimento de um cotidiano de isolamento social por causa do novo coronavírus, o hábito de reunir amigos, familiares e colegas de trabalho em torno da mesa foi suspenso. Será que esse distanciamento obrigatório nos fez redescobrir a importância das refeições feitas em conjunto?

Sinônimo de prazer e compartilhamento, o encontro para “um almoço” ou “um jantar” é um rito cultural que faz parte da vida moderna, com função prática, além de simbólica. A refeição feita em conjunto é muito mais do que o simples ato de comer juntos, pois estabelece uma forma de associação efetiva (e afetiva) entre as pessoas presentes: proporcionar trocas, criar e consolidar elos de parceria e amizade, ensinar e aprender. Podemos dizer que a refeição feita em conjunto tem importância capital na sociedade: corresponde a uma atividade central do arranjo das relações sociais – que são também culturais, políticas, econômicas, ecológicas, antropológicas…

Sobre a antropologia da refeição, foi curioso o fato de que o Musée de l’Homme, museu de antropologia e etnografia localizado no Trocadéro, em Paris, precisou fechar as portas da exposição “Je mange, donc je suis” [Eu como, logo existo] por causa da pandemia (com a reabertura do museu, a exposição segue até agosto). Nessa exposição, que explora a alimentação do ponto de vista das sociedades humanas, o visitante é convidado a um “banquete etno-culinário” para descobrir as dimensões coletivas, políticas, artísticas e até mesmo mágicas da alimentação. Há uma parte da exposição chamada justamente “À table!” [À mesa!], que trata dos costumes das refeições em várias sociedades e épocas, mostrando inclusive peças interessantíssimas feitas com vários materiais e formatos (e não apenas cerâmicas e talheres de prata como estamos acostumados!).

Há uma bela palavra nas línguas latinas que voltou a ser bastante utilizada recentemente em análises sobre o estabelecimento de um novo normal, que é comensalidade. Essa palavra deriva do latim mensa, e significa conviver à mesa, tratando da alimentação como fenômeno de organização social. Mas é curioso saber que o objeto mesa nem sempre esteve no centro dessa sociabilidade. Na Idade Média, apesar de termos a imagem da Távola Redonda reunindo os cavaleiros da corte do Rei Artur, a mesa não passava de uma tábua que era colocada ocasionalmente como apoio para as refeições, sem ocupar um lugar especial. Foi apenas a partir do século XVIII que se estabeleceu, nas casas da burguesia da Europa, a assim chamada “sala de jantar”, e com ela as tradições familiares modernas que cultivamos até hoje – expandindo o núcleo da família para o círculo de amigos, e do círculo de amigos para os encontros sociais, como clubes e ambientes de negócios.

Com o horizonte do restabelecimento do contato entre pessoas em pequenos grupos e a perspectiva de reabertura dos restaurantes, teremos finalmente a oportunidade de voltar à mesa. Essa possibilidade nos faz refletir desde já: quem, afinal, após tanto tempo sem contato pessoal, vamos querer convidar para um almoço ou um jantar? Os familiares de quem fomos afastados? Este ou aquele grupo de amigos? Quais potenciais parceiros de trabalho?

Sendo a mesa essa imagem que corresponde à possibilidade de encontros românticos, boas risadas e projetos de empreendimentos, então, a mesa é hoje a melhor metáfora que temos para o modo como queremos seguir com a vida.

Carla Bolla é restauratrice do La Tambouille, em São Paulo

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