Bolsonaro, provavelmente sem saber, se referia ao factum principis (ou “Fato do Príncipe”), uma teoria jurídica que visa a resguardar o empregador de um ato atípico, imprevisto, do Poder Público, que cause a inviabilidade do prosseguimento dos contratos de trabalho. É o que diz o artigo 486 da CLT: “No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.”
Afora a discussão sobre quais parcelas estariam abrangidas pela palavra “indenização”, a regra é de rara clareza. Em caso de paralisação do trabalho por ato de autoridade, será desta a responsabilidade trabalhista. A limpidez do texto não impediu, contudo, que ele se tornasse repentinamente objeto de intensa discussão, no âmbito da qual muitos se apressaram em dizer que a hipótese é inaplicável à paralisação econômica deste ano.
Os que defendem o não cabimento da hipótese do Fato do Príncipe à interrupção de atividades em razão da pandemia apresentam uma visão que desafia a literalidade e a lógica da norma. Dizem que os atos públicos relativos ao isolamento social são inescapáveis, obrigatórios, e sua causa emergencial exigiu imediata ação para preservação de vidas. Por isso, completam, não haveria lugar para a responsabilidade estatal — afinal, não se poderia exigir do Estado outra conduta. Dizem ainda que é do empregador os riscos do negócio, razão por que caberia a ele arcar com eventos imprevistos.
Os argumentos não se sustentam. Em primeiro lugar, se não há espaço para a responsabilização do Estado em face de acontecimento inevitável, com mais razão se pode dizer que não há espaço para a responsabilização de particular, cujos atos e possibilidades de ação são muito mais restritos. O empregador é certamente mais incapaz diante do infortúnio que o Poder Público. Em segundo lugar, é temerário penalizar o particular pelas consequências de uma crise sanitária mundial, com a singela afirmação de que é dele o risco do negócio, e não penalizar o Estado a quem cabe, em regra, a chamada responsabilidade objetiva (aquela que independe de culpa).
Além disso, esse Poder Público não é um só. São milhares de prefeitos e governadores, que trabalham com circunstâncias heterogêneas: diferem as populações, as características sociais, as atividades econômicas preponderantes, as estruturas de assistência médica etc. Portanto, cada ato administrativo é tomado, em cada esfera, com uma boa dose de discricionariedade. Isto é, o administrador tem diante de si várias ações, e dentre as ações, várias amplitudes possíveis. Em outras palavras, há atos, de fato, evitáveis.
O debate jurisprudencial está aberto, e tende a se alastrar por anos — um lamentável oferecimento do país da insegurança jurídica. É desejável, porém, que ao cabo prevaleça a interpretação técnica e literal da norma, despida de interferências políticas ou ideológicas. Se preciso for, que ninguém se lembre que, nesta, o presidente tinha razão.
Ana Fischer é juíza do Trabalho da 3ª Região. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e de outras normas legais. É uma das coordenadoras do GAET – Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.
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