Covid-19 é doença ocupacional? Resposta: somente se a natureza do trabalho causa a exposição direta ao vírus. A questão tornou-se importante por dois motivos. Primeiro, porque quando uma doença é caracterizada como ocupacional, o empregador incorre em despesas extras que podem ser vultosas: o empregado, se afastado por mais de quinze dias, fará jus a estabilidade no emprego por um ano, ao recolhimento de FGTS pelo período de afastamento, e, a depender do caso, a indenizações por danos morais e materiais. Em segundo lugar, porque o cenário é de crise econômica e retomada de atividades em meio a taxas ainda altas de contágio — passamos de quatro milhões de casos da doença no país — e, por isso, a contaminação no trabalho deve se intensificar. Ocorre que, apesar de sua relevância, e a despeito de ser facilmente respondida, a questão do enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional é objeto de incessante desinformação – que as novas normas legais e decisões judiciais só tem ajudado a disseminar.
A Medida Provisória 927, editada em março com os primeiros atos trabalhistas para o enfrentamento da pandemia, estabeleceu que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam considerados ocupacionais, “exceto mediante comprovação do nexo causal”. Tratava-se, contudo, de uma presunção já presente na própria lei previdenciária: a doença endêmica não é ocupacional, salvo se houver comprovação de “que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”. A nova norma era, portanto, inócua, e seu surgimento serviu apenas para gerar incompreensão: passou-se a reverberar errônea e simplesmente que a Covid-19 não seria, a partir de então, considerada doença ocupacional.
A confusão ganhou ainda mais força quando o STF, provocado, considerou inconstitucional a Medida Provisória quanto ao aspecto, suspendendo-lhe a eficácia. Como ela apenas reforçava o que já estava na legislação, a decisão também não causava nenhum efeito prático. Repita-se, afastada a Medida Provisória, o que resta é a lei ordinária que já tratava do assunto da mesmíssima maneira. Só que, mais uma vez, o que era apenas inofensivo, passou a ser mal interpretado. Não foram poucos os que se puseram a difundir, desta feita, o contrário: que o STF decidira que “Covid-19 é doença ocupacional”.
Suficiente não fosse, na semana passada, o Ministério da Saúde fez incluir a SARS-CoV-2 na Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT). A LDRT é uma lista que tem um fim administrativo, meramente burocrático, de viabilizar o acompanhamento, por parte do SUS, da proteção e promoção da saúde dos trabalhadores. Ela não tem, portanto, o objetivo de determinar o nexo causal entre certa doença e o trabalho. (Na mesma lista estão, por exemplo, AIDS, clamídia, meningite, dengue, hepatite, sarampo e gripe.) Além disso, tal rol não é exaustivo, mas exemplificativo. Isso significa dizer que qualquer agente patogênico que não conste dele pode ser, casuisticamente, considerado como causador de doença ocupacional, desde que se comprove o nexo causal. E o oposto também é verdadeiro: um agente patogênico que conste da lista somente causará uma doença ocupacional se o nexo causal estiver presente. Ou seja, estar ou não na lista do Ministério da Saúde não torna uma doença ocupacional ou não. Por isso, a Portaria que determinou a inclusão da Covid-19 nesse rol reafirmou apenas o óbvio: se e quando constatado nexo causal com o trabalho, a Covid-19 seria considerada doença ocupacional.
A atualização da lista, contudo, gerou má interpretação – e imediata repercussão. Passou-se a divulgar que a Covid-19 fora classificada pelo Ministério da Saúde como doença ocupacional e que, portanto, os custos para os empregadores estariam imediatamente aumentados em razão das obrigações legais pertinentes. Por causa da equivocada divulgação, a portaria que atualizava a lista foi revogada no dia seguinte – revogação que, adivinhem, causou também, por si só, mais mal-entendidos.
O enquadramento caso a caso da Covid-19 para fins trabalhistas e previdenciários já tende a causar enorme judicialização, o que inevitavelmente onerará todos nós. Não precisamos de polêmicas extrajudiciais que elevem a controvérsia e alastrem ainda mais insegurança jurídica. Quando a desinformação se dissemina tão facilmente quanto o próprio vírus, impõe-nos combater tanto um como outro.
Ana Fischer é juíza do Trabalho da 3ª Região. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e de outras normas legais. É uma das coordenadoras do GAET – Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.
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