Fábulas de resistência de Sérgio Sister

12 de agosto de 2021
Reprodução/Galeria Nara Roesler

Sérgio Sister, O inferno pode ficar pior, 1970, tinta ecoline, lápis, giz, pastel oleoso, caneta, hidrográfica sobre papel, 50 x 70 cm. Cortesia do artista e Galeria Nara Roesler. Coleção Centre Georges Pompidou, Paris, apoio de Frederic Paul

Em 2019, mostramos pela primeira vez a produção pouco conhecida de Sérgio Sister do período de 1966 a 1971, que encontra eco nesses tempos politicamente turbulentos testemunhados atualmente no nosso país. “Imagens de Uma Juventude Pop – Pinturas Políticas e Desenhos da Cadeia”, aconteceu em São Paulo, seguida por “Then and Now” (“Antes e Agora”, em tradução livre), em nossa filial nova-iorquina, recebendo nota elogiosa no jornal “The New York Times”.

Na mesma ocasião, três desenhos seus do mesmo período integraram a mostra itinerante “The Pencil is a Key: Drawing by Incarcerated Artists” (“O Lápis é Uma Chave: Desenhos de Artistas Encarcerados”, em tradução livre), inaugurada no Drawing Center, em Nova York, com trabalhos de presos dos Gulags soviéticos, do Apartheid sul-africano, da Primavera Árabe e das ditaduras militares da América Latina, como aconteceu com Sister, um dos inúmeros brasileiros perseguidos pela polícia militar. Após um mês sofrendo tortura física e psicológica no DEOPS/SP (renomeado DOPS, extinto em 1983, a dois anos do fim da ditadura), foi transferido ao presídio Tiradentes, onde permaneceu por 19 meses, entre 1970 e 1971. A histórica série foi produzida nesse contexto hostil por esse artista notável, hoje mais conhecido por suas obras monocromáticas que o inserem entre os expoentes do gênero na arte latino-americana. A obra aqui publicada, “O Inferno Pode Ficar Pior”, de 1970, faz parte da coleção do Centro Georges Pompidou de Paris.

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Em 1967, o ex-aluno do curso de arte da Faap foi selecionado para participar com seu trabalho na IX Bienal, batizada a Bienal da Arte Pop. Pela primeira vez, Sister, assim como a maioria do púbico brasileiro, viu-se diante do figurativismo vibrante de artistas da delegação norte-americana como Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein e Jasper Johns, adeptos da Arte Pop em sua exaltação ao consumismo norte-americano, símbolo da vida moderna com a qual tanto sonhávamos naqueles idos de 1960. Seus dias se dividiam entre os estudos de Ciências Sociais na USP, o trabalho como jornalista no “Última Hora” e o movimento estudantil. Como a maioria dos jovens, era contra a repressão política que havia se instalado no país no golpe militar de 1964, que culminou no AI-5 (Ato Institucional nº 5), de 1968 a 1978, o pior período na nossa história com censura, repressão, violência e mortes. Só quem não viveu esse momento de pavor, que durou duas décadas e é mencionado superficialmente nas escolas, pode desejar a volta de um estado arbitrário, responsável pelo desaparecimento de tantos brasileiros e pela dor de suas famílias.

Reprodução/Galeria Nara Roesler

Sérgio Sister, prisioneiro 2933, parte do alvará de soltura de 30 de julho de 1971, Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP). Cortesia do artista e da Galeria Nara Roesler

Diante da dura realidade do namorado, Bela, sua futura mulher – eles estão casados até hoje -, foi quem teve a ideia de levar nas visitas cadernos de desenho acompanhados de lápis de cor, crayons, canetas hidrográficas, tinta ecoline e giz para amenizar o tempo na cadeia. Tudo que entrava era examinado pela censura, assim como os desenhos depois de prontos. Sem a menor intenção de “fazer” arte, Sister desenhava diariamente, sua única válvula de escape. Na alma, o ensejo de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária. No traço, a denúncia de um sistema arbitrário. Nas cores, a visualidade da vanguarda: a Arte Pop, a Nova Objetividade e a vertente brasileira da Nova Figuração, mas também o icônico filme de animação dos Beatles, “Yellow Submarine”. Neles tudo é caoticamente articulado pela dinâmica das histórias em quadrinhos. Mas para o observador atento, os fumetos revelam palavras e frases que transmitem angústia nas letras miúdas: “dedo-duro”, “inocentes”, “eu prefiro ficar calado. Senão…”, “nem Jesus vê”. Na verdade, a censura não entendia aqueles desenhos com cores pop, não dava atenção às denúncias contidas nas letras miúdas e liberava boa parte deles. Ao ser solto, Sister levou o que pode para casa onde ficaram esquecidos em uma gaveta até recentemente.

O material foi compilado em um livro publicado pela Galeria Nara Roesler em dezembro de 2019 com patrocínio do grupo GPS. A publicação revela esta corajosa face do artista em um contexto sócio-político que manchou a integridade nacional para sempre. Muitos presos políticos na mesma situação depois de libertados não conseguiram seguir em frente se entregando à depressão. O dadaísta Jean Arp, um pouco esquecido nos dias de hoje, disse após a Primeira Grande Guerra: “Enojados com a matança da guerra nos voltamos para a arte”. No caso de Sister, a prática diária do desenho exorcizou seu sofrimento, prova que a arte salva.

Quando olho esses trabalhos de observação aguda do comportamento humano criados por esse artista admirável, penso no momento atual e ouço na minha mente o refrão de “Cálice” (1973) de Chico Buarque: “Pai, afasta de mim esse cálice (cale-se) De vinho tinto de sangue (…)”.

Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte (cynthigarciabr@gmail.com)

Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação, inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.

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