Na mesma ocasião, três desenhos seus do mesmo período integraram a mostra itinerante “The Pencil is a Key: Drawing by Incarcerated Artists” (“O Lápis é Uma Chave: Desenhos de Artistas Encarcerados”, em tradução livre), inaugurada no Drawing Center, em Nova York, com trabalhos de presos dos Gulags soviéticos, do Apartheid sul-africano, da Primavera Árabe e das ditaduras militares da América Latina, como aconteceu com Sister, um dos inúmeros brasileiros perseguidos pela polícia militar. Após um mês sofrendo tortura física e psicológica no DEOPS/SP (renomeado DOPS, extinto em 1983, a dois anos do fim da ditadura), foi transferido ao presídio Tiradentes, onde permaneceu por 19 meses, entre 1970 e 1971. A histórica série foi produzida nesse contexto hostil por esse artista notável, hoje mais conhecido por suas obras monocromáticas que o inserem entre os expoentes do gênero na arte latino-americana. A obra aqui publicada, “O Inferno Pode Ficar Pior”, de 1970, faz parte da coleção do Centro Georges Pompidou de Paris.
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Diante da dura realidade do namorado, Bela, sua futura mulher – eles estão casados até hoje -, foi quem teve a ideia de levar nas visitas cadernos de desenho acompanhados de lápis de cor, crayons, canetas hidrográficas, tinta ecoline e giz para amenizar o tempo na cadeia. Tudo que entrava era examinado pela censura, assim como os desenhos depois de prontos. Sem a menor intenção de “fazer” arte, Sister desenhava diariamente, sua única válvula de escape. Na alma, o ensejo de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária. No traço, a denúncia de um sistema arbitrário. Nas cores, a visualidade da vanguarda: a Arte Pop, a Nova Objetividade e a vertente brasileira da Nova Figuração, mas também o icônico filme de animação dos Beatles, “Yellow Submarine”. Neles tudo é caoticamente articulado pela dinâmica das histórias em quadrinhos. Mas para o observador atento, os fumetos revelam palavras e frases que transmitem angústia nas letras miúdas: “dedo-duro”, “inocentes”, “eu prefiro ficar calado. Senão…”, “nem Jesus vê”. Na verdade, a censura não entendia aqueles desenhos com cores pop, não dava atenção às denúncias contidas nas letras miúdas e liberava boa parte deles. Ao ser solto, Sister levou o que pode para casa onde ficaram esquecidos em uma gaveta até recentemente.
O material foi compilado em um livro publicado pela Galeria Nara Roesler em dezembro de 2019 com patrocínio do grupo GPS. A publicação revela esta corajosa face do artista em um contexto sócio-político que manchou a integridade nacional para sempre. Muitos presos políticos na mesma situação depois de libertados não conseguiram seguir em frente se entregando à depressão. O dadaísta Jean Arp, um pouco esquecido nos dias de hoje, disse após a Primeira Grande Guerra: “Enojados com a matança da guerra nos voltamos para a arte”. No caso de Sister, a prática diária do desenho exorcizou seu sofrimento, prova que a arte salva.
Quando olho esses trabalhos de observação aguda do comportamento humano criados por esse artista admirável, penso no momento atual e ouço na minha mente o refrão de “Cálice” (1973) de Chico Buarque: “Pai, afasta de mim esse cálice (cale-se) De vinho tinto de sangue (…)”.
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação, inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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