Bukhman ligou a TV. Notícias da invasão encheram a tela. Ele vasculhou aplicativos de notícias em seu telefone. “Nós realmente não esperávamos que isso aconteceria”, diz Bukhman, um bilionário nascido na Rússia que tem milhares de funcionários desenvolvendo jogos para celulares na Rússia e na Ucrânia. Enquanto ele cambaleava em estado de choque, sua equipe ucraniana entrou em ação.
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“Não estamos a par de tudo. Eles começaram a reagir muito mais rápido do que nós”, diz Bukhman sobre os 1.500 funcionários na zona de guerra. “Fiquei sabendo das principais decisões e ofereci recursos, mas eu acreditava que tudo isso acabaria em poucos dias.”
Igor e seu irmão mais novo, Dmitri, que compartilham o comando da empresa de 18 anos, logo percorreram as ruas históricas que separam as residências dos dois no distrito londrino de Kensington e se reuniram para elaborar um plano. A fortuna conjunta dos dois é estimada em mais de US$ 16 bilhões (R$ 75 bilhões) e vem principalmente de jogos como Fishdom e Gardenscapes.
“Não somos uma grande empresa”, diz Bukhman, que tem 40 anos. “Quero dizer, temos grandes receitas, mas somos apenas duas pessoas e temos gerentes, mas eles estão trabalhando em jogos. Não temos um plano B”.
Bukhman diz que o pagamento tranquilizou os colaboradores sobre a estabilidade da empresa e ofereceu apoio não apenas aos ucranianos nas linhas de frente do conflito, mas também aos russos que foram atingidos pelo colapso do rublo.
Mas a dupla logo enfrentou outras dificuldades. Mesmo enquanto centenas de funcionários tentavam se manter em segurança, confrontos entre colegas de trabalho eclodiram no Slack. Depois de algumas piadas trocadas, um funcionário baseado na Ucrânia revidou: “Provavelmente é fácil e divertido para você… Você não acordou às cinco da manhã com uma explosão ensurdecedora.”
Nos dias seguintes, essas brigas se transformaram em “explosões de ódio descontrolado entre funcionários”, diz Bukhman. A princípio, os irmãos pediram o fim das discussões “políticas” e moderadores da empresa começaram a deletar postagens sobre a guerra – mais tarde, a empresa decidiu fechar os canais no Slack.
A Playrix e seus fundadores bilionários estão em uma situação difícil, mas não estão sozinhos. Muitos empresários recorreram à Rússia e à Ucrânia nos últimos anos para explorar mão de obra barata para produtos de tecnologia. Agora, seus negócios estão em uma zona de guerra.
A Grammarly, com sede em São Francisco, mas fundada por dois bilionários nascidos na Ucrânia, Alex Shevchenko e Max Lytvyn, abriu um escritório com 128 estações de trabalho em Kiev em 2020.
Snapchat e Lyft também tinham escritórios lá, e a Ring, de propriedade da Amazon, empregava mais de mil funcionários na capital ucraniana. A IPG Photonics, a Ubisoft e a Wargaming, desenvolvedora por trás do jogo World of Tanks, têm (ou tiveram) operações em Moscou.
Ao mesmo tempo, dezenas de milhares de trabalhadores russos da área de tecnologia – que se opõem à guerra ou que descobriram que as sanções internacionais e as restrições russas à internet impossibilitam seu trabalho – fugiram para a Armênia, Geórgia e Turquia.
Bukhman não planeja fechar a operação na Rússia, mas diz que a Playrix já ajudou cerca de 10% de seus 1.500 funcionários russos a se mudarem para o exterior.
Outras empresas adotaram uma linha mais dura. A JetBrains, empresa com sede em Praga que é dona da principal linguagem de código do Android, é administrada por dois bilionários russos, Sergey Dmitriev e Valentin Kipyatkov. Os dois decidiram fechar seus escritórios na Rússia em março. Os funcionários que não se mudarem para a República Tcheca ou para outro lugar serão demitidos.
A startup Miro, de São Francisco, que arrecadou US$ 400 milhões (R$ 1,87 bilhão) e foi avaliada em US$ 17,5 bilhões (R$ 82,2 bilhões) em janeiro, também fechou seu escritório na Rússia e demitiu os funcionários que não se mudaram.
“Há um êxodo de empresas de tecnologia da Rússia, porque é suicídio econômico ficar e também não é seguro estar lá agora fisicamente”, diz Mikhail Mizhinsky, diretor administrativo da Relocode, uma empresa com sede em Londres que ajuda startups russas a se estabelecerem na Europa.
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A guerra é uma questão pessoal para alguns. É o caso de Nikolay Storonsky e Vlad Yatsenko, os bilionários cofundadores do banco digital britânico Revolut, uma das startups mais valiosas do mundo, atualmente avaliada em a US$ 33 bilhões (R$ 155 bilhões).
Storonsky cresceu na Rússia, mas seu pai é ucraniano. O empreendedor deixou o país natal aos 20 anos e agora, aos 37, é cidadão britânico. Yatsenko, que chamou Vladimir Putin de “um dos mentirosos mais descarados da história” no dia em que a guerra estourou, vem da cidade ucraniana de Mykolaiv, que foi destruída pela guerra.
“Quando eu era criança, a noção de uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia era impensável. Não apenas porque a guerra e a perda de vidas inocentes são sempre erradas, mas porque, para mim, ucranianos e russos são parentes”, escreveu Storonsky em uma postagem de blog no dia 1º de março.
A 1.500 quilômetros de Kiev, os discretos escritórios da Playrix em um parque empresarial nos arredores de Dublin estão quase desertos enquanto os irlandeses comemoram o feriado do Dia de São Patrício. Bukhman baixa as persianas da sala de reuniões para bloquear o sol que banha as escarpadas montanhas da cidade. “Alguns de nós trabalham no calendário russo”, diz ele com um encolher de ombros.
A Playrix se descreve como uma empresa internacional que fala principalmente russo desde que os irmãos a transferiram para a segura (e com impostos baixos) Dublin, em 2013. A sede da empresa tem grandes multinacionais entre seus vizinhos, como a Microsoft.
É um mundo distante das origens da Playrix, que começou no quarto que os irmãos Bukhman dividiram crescendo em Vologda, uma pequena cidade russa a cerca de 480 quilômetros de Moscou.
Crescer em uma das poucas famílias judias na cidade remota, que até mesmo os russos conhecem principalmente por uma música pop homônima da era soviética, fez com que Bukhman se sentisse um estrangeiro.
“De certa forma, não me sentia russo”, diz ele. “Era difícil para mim dizer publicamente que eu era judeu, embora nunca tenhamos enfrentado pessoalmente nenhum tipo de antissemitismo. Mas ouvimos de nossos pais e avós que você deveria ter cuidado.”
Bukhman começou a trabalhar com programação em 2001, quando estudava matemática aplicada na universidade de sua cidade natal. Um professor mencionou que era possível ganhar bastante dinheiro escrevendo código de programas shareware.
“Nós obviamente não tínhamos dinheiro suficiente para comprar um computador”, diz ele. “Quando começamos a ganhar dinheiro, uma de nossas primeiras compras foi outro computador, o que dobrou nossa produtividade.”
Os irmãos abriram formalmente a Playrix em 2004 e começaram a contratar desenvolvedores e artistas em sua cidade natal. A empresa evoluiu: da criação de jogos simples de quebra-cabeça para computadores domésticos, passou a fazer jogos sociais, abrigados no Facebook, para competir com o então popular Farmville (da Zynga).
Depois, voltaram-se para aplicativos de jogos gratuitos em 2009. Ao longo do caminho, eles adquiriram vários estúdios independentes de jogos na Ucrânia.
A maior parte da receita de US$ 2,7 bilhões (R$ 12,68 bilhões) da Playrix vem de usuários nos Estados Unidos, mas os jogos também se saem bem na China.
As microtransações ajudaram os irmãos a iniciar o negócio sem nenhum investimento externo. Eles há muito ansiavam por se mudar de sua cidade natal, mas a situação ficou grave há dez anos atrás, quando a polícia russa apareceu no escritório fazendo perguntas sobre as finanças da empresa.
Os dois descobriram que alguns terrenos que eles haviam comprado não pertenciam à pessoa que fez a venda. “Não foi nem uma questão de dinheiro. Eu perdi a crença no sistema e também a sensação de que podíamos estar seguros”, diz Bukhman.
A Playrix cresceu durante a pandemia e teve um aumento de 53% na receita graças ao marketing que atraiu as pessoas confinadas em casa. Atualmente, é a quarta maior empresa de jogos para celular do mundo (por receita), atrás da Tencent, NetEase e Activision, da China. O patrimônio líquido dos irmãos Bukhman, que juntos possuem 96% da empresa, mais do que dobrou desde 2020.
Mas os anos de crescimento rápido em Dublin foram uma preparação ruim para a crise atual. Empresas de tecnologia enxutas e jovens normalmente não gastam muito tempo fazendo planos de contingência geopolítica. Ainda assim, algumas startups silenciosamente planejavam o pior. Entre as mais bem preparadas estavam aquelas com raízes em países em conflito.
A construtora de sites Wix, com sede em Tel Aviv, começou a transferir funcionários ucranianos importantes para a Polônia em janeiro. Em fevereiro, diante do aumento das tensões, a empresa fez uma oferta extraordinária: ela pagaria a mudança de todos os seus mil funcionários ucranianos que quisessem viver temporariamente na Turquia. Quando o Exército russo invadiu a Ucrânia, uma frota de ônibus fretados pela Wix levou os empregados que restaram para o oeste do país, uma região ainda relativamente segura.
Muitas startups israelenses têm laços profundos com a Ucrânia graças a décadas de emigração judaica da antiga União Soviética, e seus planos de emergência foram bem ensaiados. “Digamos que estamos acostumados a ter planos de contingência”, diz Marian Cohen, CEO da Associação Israelita de Alta Tecnologia, um grupo de lobby.
Embora poucas empresas estivessem tão preparadas quanto a Wix e a Fiverr, algumas foram rápidas em compensar o tempo perdido.
Os executivos da Revolut se posicionaram rápida e publicamente contra a guerra, e a empresa ajudou a evacuar funcionários e suspendeu contas de cidadãos russos. Em meados de março, o banco deixou de cobrar taxas de transferências para contas bancárias ucranianas e reduziu as verificações de identidade para novos clientes, pensando que haveria pessoas que teriam fugido sem passaporte ou outros documentos essenciais.
O posicionamento público dos Bukhmans evoluiu significativamente desde o início da guerra. Quando Dmitri se dirigiu aos funcionários pela primeira vez após a invasão em 24 de fevereiro, ele declarou que a Playrix era “apolítica”.
Quatro dias depois, ao anunciarem os salários adicionais para seus funcionários, os irmãos fizeram uma postagem no Facebook declarando que a guerra era uma “grande tragédia para todos, incluindo para nossa empresa”. Assim, tornaram-se alguns dos primeiros bilionários russos a se manifestarem contra a invasão, escrevendo que “a violência nunca pode ser a solução para um problema”.
Isso não foi suficiente para alguns funcionários da Playrix, que criticaram a declaração por ser pouco enfática – e por ter vindo demais. “Durante cinco dias, a Playrix nem chamou o que estava acontecendo de guerra”, diz um funcionário ucraniano, que falou sob condição de anonimato. “Estou muito nervoso porque a empresa não quer chamar os bois pelos nomes.”
Um produtor da Playrix que permaneceu em sua cidade natal, Kharkiv, apesar dos constantes bombardeios russos, diz que estava “tremendo de raiva” ao ver a empresa excluir postagens de funcionários ucranianos. Ele entendia por que a Playrix queria limitar discussões políticas irritantes, “mas uma coisa é quando é uma opinião política, outra bem diferente é quando há uma guerra”, diz o produtor, que pediu para permanecer anônimo por medo de repercussões. Ele se demitiu da Playrix em protesto.
Outros profissionais sinalizaram que vão tomar providências assim que possível. Uma funcionária antiga da Playrix, que optou por ficar na Ucrânia durante a guerra, diz que vai sair da companhia assim que o conflito acabar. “A posição da empresa ficou clara: ‘Vamos tirar você do país, mas se alguém quiser ficar para ajudar ou lutar por sua liberdade, não espere ajuda’.”
Internamente, os fundadores reconheceram o feedback dos funcionários de que deveriam adotar uma postura pública mais forte. “Nas redes sociais, [Dmitri] e eu expressamos nosso apoio à Ucrânia como pudemos”, escreveu Igor aos funcionários em 4 de março. “Mas temos 16 escritórios e 1.500 funcionários na Rússia… Não podemos assumir uma posição aberta agora, porque somos responsáveis por todos os nossos funcionários e suas famílias.”
No início do conflito, essas preocupações pesavam muito. A Playrix agora parece mais confiante de sua posição. Depois de inicialmente desencorajar os funcionários a fazerem doações para a Ucrânia e se preocupar em dar pagamentos extras aos funcionários na zona de guerra, a Playrix anunciou em 11 de março que doaria US$ 500 mil (R$ 2,34 milhões) para a Cruz Vermelha ucraniana, seguindo os passos da Revolut. Um canal do Slack, inclusive, foi reaberto e as regras sobre comentários políticos foram afrouxadas.
As coisas continuam longe de serem perfeitas. Bukhman, que ainda tem muitos funcionários de longa data na Rússia, pensa que mais trabalhadores pedirão demissão. Seus gerentes estão tentando encontrar maneiras de minimizar interações entre os funcionários ucranianos com os falantes de russo, incluindo o próprio Bukhman. Não é uma receita para a harmonia, mas talvez a harmonia seja pedir demais.
“Não poderemos continuar trabalhando da maneira que trabalhávamos antes”, diz Bukhman, “mas acho que conseguiremos continuar trabalhando na Ucrânia”.