Aqui, trechos da conversa com a editora Fabiana Corrêa, que aconteceu na segunda (6), abrindo a semana do Dia Internacional da Mulher no perfil de Forbes Mulher no Instagram. Para assistir integralmente, só clicar.
Leia também: Conselho de CEO: executivas dão dicas para alavancar sua carreira
Forbes: Lívia, você é escritora, promotora e atua em diversos movimentos sociais, da luta antirracista e contra o machismo. Como você define seu trabalho hoje?
F: Quando você decidiu por esse caminho?
LV: Eu sou promotora de justiça desde 2004. Acho importante dizer que o racismo e o sexismo acabam definindo essas escolhas. No início, eu queria fazer carreira no jornalismo. Mas meu pai, naquela época, me chamou num canto da sala para conversar e me fez uma pergunta que me fez mudar. “Você já viu alguma mulher negra na televisão?”. Eu parei pra pensar e o máximo que a gente tinha era a Glória Maria, né? Acabei indo para o direito com a orientação que meu pai me deu naquele dia. Hoje sinto uma grande responsabilidade por estar no direito, que é muito masculino e branco, tanto na sua composição como suas práticas. Isso contribui para que a gente possa ir derrubando barreiras.
F: Em que momento da sua carreira você sentiu que rompeu, pela primeira vez, essa barreira?
LV: Interessante que sou de Salvador (BA), que é reconhecida como a cidade mais negra fora da África. Nós somos 86% de pessoas negras. Aí quando eu chego no Ministério Público da Bahia, me vi como negra única em muitos espaços. E, quando eu comecei a ter uma projeção nacional do meu trabalho e a frequentar outros espaços em outros estados, isso piorou. Como mulher negra, isso nos traz não só uma solidão afetiva, mas uma solidão institucional. A presença de uma mulher negra nesses espaços é pedagógica, porque um dos maiores efeitos do racismo é naturalizar ausências nestes espaços.
Nos Estados Unidos, recentemente nomearam a primeira mulher negra na Suprema Corte. No Brasil, em mais de 130 anos do Supremo Tribunal Federal, nós não temos mulheres negras. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), pessoas negras na magistratura brasileira são apenas 12,8% . Então temos um sistema de justiça com visões unilaterais do que é justiça, do que é liberdade, do que é a igualdade. A justiça é uma construção. E eu não consigo enxergar um Estado que se diga realmente democrático e de direito sem que o sistema de justiça, que é essa grande bolha, tão difícil de furar, se abra realmente para a diversidade.
F: Percebo, em alguns encontros de executivas, que há mulheres manifestando um desconforto quando chegam em um evento ou reunião e percebem estar em um ambiente sem (ou com poucas) mulheres negras. É um passo pequeno, mas já indica uma tomada de consciência, certo?
F: Uma coisa que temos falado é no poder da colaboração, em trazer aliados. No caso das mulheres, enquanto não houver mais homens participando e apoiando, as coisas vão continuar difíceis…
LV: Isso é fundamental. As mulheres negras ainda não estão nesses espaços de decisão. Se não tivermos aliados, é muito difícil que a gente consiga realmente romper essas barreiras. É importante trazer essa luta antirracista e anti-sexista para homens, para pessoas brancas. Afinal de contas, quando a gente fala de racismo, não foram as pessoas negras que criaram, né? Quando nós não estamos nesses espaços e não conseguimos ser escutados, somos objetos de política pública.
F: Você disse que há um erro na concepção do que é lugar de fala. Qual a sua concepção de lugar de fala?
LV: Que você não precisa pertencer àquele grupo para falar de certos temas. Uma vez eu ouvi uma pergunta de uma colega, um mulher branca que queria saber o que fazer para ser antirracista. Não tem lugar de fala isso. Claro que ela tem lugar de fala. É o lugar de fala de uma mulher branca antirracista, entende? Todas as pessoas têm. Você pode falar por um grupo olhando para o que eles precisam, abrir espaço para que esses grupos estejam presentes e se posicionar individualmente contra a opressão.
F: Sua imagem traz muitos elementos da sua história e identidade. Turbantes, por exemplo. Como lidou com isso estando em lugares com tantas restrições como tribunais a determinados órgãos públicos, por exemplo?
LV: Meus turbantes e minhas tranças, o meu cabelo black, os meus búzios. Isso não é estética, isso é linguagem. Nos espaços em que muitas vezes a minha voz não é escutada, meu corpo já está falando. Por que só as vestes talares são condizentes com a dignidade e o exercício da advocacia ou do exercício de funções da justiça? Por que o meu turbante não é adequado? Sou fundadora de um coletivo de juristas negras e estamos pleiteando junto às instituições do sistema de justiça, que reconheçam as vestes que identificam a nossa memória. Eu já tive que ouvir : “você vai fazer o júri com esse cabelo?”. Sim, afinal de contas, é o meu cabelo. Não temos que ser obrigadas a alisar nosso cabelo, embora isso ainda tenha acontecido em vários espaços institucionais.