Aos 21 anos, a hoje ativista Nadia Murad deu uma entrevista à rede de TV norte-americana CBS News contando a história de seu sequestro e escravidão pelo Estado Islâmico. A narrativa rodou o globo, Murad ganhou reconhecimento mundial e a levou a criar a Nadia’s Initiative. A organização é de proteção à população iazidi, minoria religiosa da qual Murad faz parte, e aos direitos sexuais de mulheres e meninas em situações de conflito.
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Por conta de seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como arma de guerra, Murad recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2018, junto do ginecologista Denis Mukwege.
Ela ainda publicou o livro “Que eu seja a última” e lançou o Código Murad junto à ONU (Organização das Nações Unidas), que fala sobre como se relacionar com pessoas como ela, vítimas de crimes sexuais, e garantir que elas contem suas histórias com segurança. Em parceria com a advogada Amal Clooney, Murad também está processando o Estado Islâmico em tribunais internacionais para lutar contra a impunidade de agressores do povo iazidi.
Em um evento do projeto de palestras Fronteiras do Pensamento na última segunda-feira (19), Nadia Murad conversou com a Forbes sobre sua trajetória.
Forbes: Como você se preparou para, depois de ter vivido o que viveu, conseguir contar sua história para o mundo?
Nadia Murad: Não tive tempo de me curar e me recuperar do que aconteceu antes de contar a minha história. Quando escapei do cativeiro, morei em um campo de refugiados rodeada de milhares de pessoas. Não tinha o que fazer o dia inteiro e só ficava esperando o próximo dia. As minhas experiências de ficar aprisionada, perder familiares e ter que deixar a minha comunidade aconteceram rápido e ao mesmo tempo. Por isso, nunca tive tempo de refletir sobre o que aconteceu. Eu estava desesperada para alguém escutar a minha história porque muitos dos meus familiares ainda estavam desaparecidos e sabia que eles precisavam de ajuda. Infelizmente, eu também sabia que, sem contar ao mundo o que estava acontecendo, nada iria ser feito.
F: Como veio a ideia de fundar a Nadia’s Initiative?
NM: Quando compartilhei minha história pela primeira vez, pensei que as pessoas fariam alguma coisa, fariam algo para impedir esses crimes e resgatariam quem ainda estava em cativeiro. Mas a comunidade internacional e o nosso governo, depois que a região de Sinjar foi libertada, estavam focados nos campos e não prontos para ajudar as pessoas a voltarem a viver uma vida mais próxima do normal. É inviável seguir com a vida nos campos de deslocados. Não tinha privacidade, oportunidades e, muito menos, propósito. Para mim, manter as pessoas nas condições dos campos é fortalecer o que resta do Estado Islâmico. Foi assim que eu comecei a Nadia’s Initiative. É muito difícil ser forçado a deixar tudo para trás. Construímos, eu, minha mãe e meus irmãos, uma casa de barro onde moramos por décadas. A vida era pobre, mas gostávamos do que tínhamos.
F: Que dica você daria para outras mulheres que querem compartilhar suas histórias e falar sobre o que está acontecendo em suas comunidades?
NM: Por favor, não deixe ninguém representá-las, porque ninguém conhece sua história melhor do que você mesma. As pessoas vão te dizer que a contarão no seu lugar, mas nada é tão importante quanto contar sua própria história. Há poder nas histórias pessoais e é importante que elas representem a si mesmas.
F: Qual o impacto de ganhar o Prêmio Nobel sobre sua atuação como ativista?
NM: Ajudou a levar a minha voz para mais pessoas e lugares, a encontrar lideranças mundiais e discursar em locais muito importantes. Mas o Prêmio Nobel foi apenas algo para reconhecer a minha luta. Esse prêmio por si só não impede que o que aconteceu comigo aconteça com outras mulheres. Ainda assim, sempre vou lembrar da noite em que me contaram que eu tinha sido a ganhadora. Estava na Universidade de Harvard, me ligaram para falar e lembro que só chorei nesse momento. Quando comecei a ser ativista, eu nem sabia que o Prêmio Nobel existia. Sim, ganhei um grande reconhecimento, mas também tive tudo tirado de mim. Pude mostrar para os homens do Estado Islâmico que me aprisionaram: “Vocês me viam como um objeto e, na verdade, eu sou vista como uma mulher e uma voz ainda mais forte”.
F: Aqui no Brasil também temos altos índices de violência contra mulheres. Como você acha que podemos atuar para diminuir essa violência?
NM: Acho que abuso sexual é igual, seja de um terrorista ou de um membro da sua família. É abusar da mente, do corpo e de toda a vida de uma mulher. Especialmente em países como o Brasil, onde há tantas pessoas incríveis e jovens que realmente querem mudar o país, é muito importante que você se concentre em mudar o sistema que permite que isso aconteça. Qualquer um que não está pensando duas vezes antes de cometer esse crime abusar, se sente fortalecido pela impunidade. Se você, publicamente responsabilizar uma pessoa, levá-la ao tribunal pelo que fez e mostrar que estava errado, por si só já assustará outros homens que pensarem em fazer o mesmo.
F: Quais foram as principais dificuldades nessa trajetória?
NM: No meu ativismo, fazer outros líderes reconhecerem a violência sexual como uma arma de guerra sempre foi um desafio, porque eles consideram isso de pouca importância. Falamos com as mesmas pessoas repetidamente, levando evidências, relatos, e dizendo que se nós não fizermos algo, isso pode acontecer em outro momento. Tenho mais desafios por ser uma sobrevivente assumindo a liderança e ajudando a reconstruir minha comunidade. As pessoas acham que o sobrevivente não dá conta de reconstruir as coisas, que é apenas um sobrevivente.
F: O que você aprendeu sobre si mesma nesta vida de ativismo?
NM: Nunca tinha pensado, antes de tudo acontecer, em como eu viveria a minha vida sem a minha família, principalmente com a morte da minha mãe. Eu simplesmente não via a vida sem ela. E agora eu penso: “Sou tão forte que, apesar de tudo, hoje gosto de estar viva e de fazer esse trabalho”. Mas acho que também perdi muitas partes alegres de mim, como amar maquiagem, passear com amigos ou apenas estar com minha família. Mesmo quando estou com minhas irmãs e sobrinhos, sinto que tomamos cuidado para não machucar uns aos outros com o que estamos falando por conta de tudo o que passamos. Estou descobrindo como lidar com isso, mas sou grata por cada experiência que tenho. Sempre me considero uma das mais sortudas quando comparo minha vida com a das minhas sobrinhas que não conseguiriam fugir.
F: Você está estudando sociologia na universidade. Quais são seus planos para depois que se formar?
NM: Eu sempre amei estudar e pensava que seria professora de história, mas isso foi só uma ideia, porque eu sabia que nunca iria para a universidade vivendo no Iraque. Espero que, por meio desse diploma, eu consiga criar cursos de como lidar com vítimas de violência sexual, como o Código Murad, e de responsabilização dos agressores – temas importantes que a gente geralmente não aprende lá. Espero ainda inspirar outros refugiados, especialmente mulheres e meninas. Quando você se torna um refugiado, você pensa que a vida acabou para você. Quero que saibam que podem estudar e que é possível recomeçar a vida.
F: Como era a sua relação com as mulheres da sua família?
NM: Eu cresci rodeada por mulheres fortes na minha família. Tinha duas irmãs e cresci com sete cunhadas, que tiveram filhas de idades próximas à minha. Todas éramos muito próximas. Quando fomos atacados, morávamos todos os 21 na mesma casa e compartilhávamos as mesmas coisas. Então sempre fui muito próxima deles, especialmente da minha mãe, porque eu era a caçula de 11 filhos e, por causa disso, era vista como a “bebê da família”. Acho que é por isso que ter eles tirados de mim de repente foi tão difícil. Eu, por exemplo, amava arrumar meu cabelo e fazer maquiagem quando era mais nova. Não tinha salões de beleza na vila onde eu morava e ter maquiagem era muito caro. Me lembro que toda vez que tinha um casamento, nós dirigíamos para a cidade por uma hora em estradas de terra para fazer o cabelo e maquiagem. E eu sempre dizia: “Um dia serei conhecida por abrir o primeiro salão de beleza daqui”. Minha mãe gostava da ideia, mas ela também sabia que isso nunca seria possível na nossa realidade.