A reinvenção digital de todos nós e o futuro do Brasil

10 de dezembro de 2020
Getty Images

O país precisa encontrar formas inclusivas de desenvolver seu capital humano para um contexto de digitalização acelerada

Existem muitos pensadores e influenciadores brasileiros que falam sobre a reinvenção profissional ao longo da vida num contexto hiperdigital. Temos o comunicador Mauro Wainstock, a especialista em educação e longevidade Betty Dabkiewicz, o consultor Alexandro Strack e os professores Marcelo Nakagawa e Virgílio Almeida entre as muitas fontes que nos fazem refletir sobre as diferentes formas como uma carreira pode evoluir durante nossa jornada no planeta azul.

Algumas empresas de grande porte se mostram mais propensas, ainda que de forma tímida, a absorver pessoas que querem se manter ativas e têm muito a contribuir para quem as contrata. Além disso, existem exemplos notáveis de pessoas que fazem cada vez mais durante a vida: o ex-âncora do “Jornal Nacional”, Cid Moreira, que anunciou sua startup aos 93 anos de idade, é um deles.

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Entre as reflexões sobre o tema de “reinvenção digital” que me provocaram neste sentido recentemente estão os artigos publicados nas últimas semanas por Almeida, ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação, e Nakagawa, professor de inovação e empreendedorismo do Insper.

Em um artigo recente, Almeida (que hoje é professor em Harvard) fala de competências digitais para o Brasil. Entre outras coisas, o artigo publicado com Francisco Gaetani (também ex-secretário, nos Ministérios do Meio Ambiente, Planejamento e hoje professor na FGV) defende a tese de que, para se posicionar bem na economia digital, atrair investimentos e melhorar sua competitividade, o Brasil precisa desenvolver seu capital humano.

E como isso se dá? Primeiro, existe um conjunto de requisitos que os acadêmicos citam como necessários para participar da economia digital. Um deles é o desenvolvimento do “olhar digital” – ou seja, conseguir olhar um problema e achar formas de resolvê-lo ou mesmo de criar novas realidades usando ferramentas digitais.

Segundo os acadêmicos, isso é algo difícil de aprender depois de certa idade. Isso, dizem os autores, ocorre porque muitas pessoas simplesmente não conhecem estas possibilidades digitais apesar de terem um vasto repertório de conhecimentos da vida real. Adiciono aqui a desigualdade no acesso à tecnologia nas classes menos abastadas, que reduz as possibilidades de saber mais sobre as oportunidades da nova economia.

Por outro lado, os autores deixam evidente que existe uma enorme oportunidade de geração de valor relacionada ao fomento de uma cultura intergeracional nas organizações públicas, privadas e no terceiro setor, e que este é um tema que antecede o atual foco em transformação digital.

De quem é a responsabilidade de fazer com que essa reinvenção aconteça?

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Além do debate sobre os benefícios de ter diversas gerações trabalhando num contexto digital estar ganhando novo fôlego, há também uma discussão em curso sobre a necessidade de educação contínua. A ideia é que as pessoas desenvolvam uma série de capacidades técnicas e socioemocionais para continuar participando desse admirável mundo novo.

O artigo de Nakagawa traz um senso de urgência para a ideia de repensar carreiras, com referências que ressaltam o inexorável fato de que teremos vidas cada vez mais longas e, portanto, precisaremos ressignificar conceitos como a nossa própria estabilidade e relevância econômica e social. Segundo o acadêmico, esse processo pode acontecer de forma “natural e evolutiva” para algumas pessoas, mas também pode ser uma enorme barreira, “aparentemente intransponível”, para outras.

Mais à frente no texto, o especialista nota, citando o psicólogo Herbert Gerjuoy, que “o analfabeto de amanhã não será a pessoa que não sabe ler, mas aquele que não aprendeu a aprender”. Ou seja, ter a capacidade de transitar entre o concreto e o abstrato, lidar com problemas de forma não-óbvia, o famoso “pensar fora da caixa”. Principalmente, inclui a habilidade de aprender sozinho e de forma contínua – o tal do “lifelong learning”, em que se busca, por conta própria, aprender coisas novas ao longo da vida.

Em uma defesa da necessidade de ter uma motivação para aprender e da descoberta do propósito individual, Nakagawa ressalta que muitas pessoas não conseguirão se reinventar por não saberem qual é o seu propósito no mundo.

O texto faz um convite para que pessoas vivenciem outras realidades além da atual, para quem sabe, conseguir encontrar algo que se alinhe a um propósito.

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São muitos os exemplos de pessoas que conseguiram se reinventar para continuar, ou mesmo começar, uma nova trajetória profissional em meio a revolução digital, como o de Cid Moreira, que também é influenciador digital. Além disso, existem abordagens defendidas por especialistas como Strack, como o no-code, movimento em que elimina-se a necessidade de conhecimento em programação tradicional para a criação de novos produtos digitais, como aplicativos.

Hoje em dia, é possível cortar caminhos para criar coisas com tecnologia. Estes atalhos, no entanto, não são necessariamente óbvios para todos. Para além da responsabilidade individual e do fato de que as ferramentas estão aí, é preciso considerar os que ainda não conseguem empreender tal reinvenção – e criar condições para mudar estas realidades.

Neste contexto, qual é o papel do governo e das empresas? Me chamou a atenção o ponto levantado por Almeida e Gaetani, de que a revolução digital traz consigo uma urgência que insistimos em ignorar, como se isso nos absolvesse de consequências e responsabilidades. Isso inclui a priorização de competências digitais na agenda de desenvolvimento do Brasil.

Mas o país está atrasado na compreensão e no desenho de iniciativas que enfrentem este futuro hiperdigital que já se apresenta, dizem os autores. Os ex-secretários não se mostram otimistas sobre a possibilidade de criação de um programa nacional que abrace a necessidade de construção de capacidades digitais e estratégicas (como a habilidade de aprender a aprender ressaltada por Nakagawa). Tampouco acham provável que empresas absorvam os custos associados à criação de equipes multigeracionais num contexto de digitalização acelerada.

Ao invés de aceitar que a tarefa de avançar nas competências para a economia digital recaia nos ombros da academia e do terceiro setor, conforme propõem Almeida e Gaetani, é preciso criar uma situação em que os detentores do poder contribuam para a alteração deste cenário.

Há uma estratégia nacional de inovação em desenvolvimento, que deve endereçar a criação de competências, porém o escopo precisa ir além da criação de talentos em início de carreira. Nesse desenho, é necessário criar meios (mais subsídios, incentivos, cotas?), leis e regulamentações para garantir que todos – incluindo os mais de 14 milhões de desempregados – se mantenham social e economicamente ativos através de empregos na economia digital.

Tudo isso parece evidente e desejável, mas temos uma realidade em que grande parte da população se encontra digitalmente excluída ou quase isso, com uma série de outros fatores que não colaboram para que o Brasil e seus cidadãos acompanhem a revolução digital de fato. Por outro lado, empresas continuam a protagonizar episódios lamentáveis e rotineiros de idadismo, racismo, sexismo e outros tipos de preconceito, desperdiçando o potencial da geração coletiva de valor.

Considerando os enormes desafios coletivos que se apresentam, precisamos ampliar o debate e ações sobre o futuro, junto a todos os atores que dele participarão. Assim como todos precisamos de um rumo na vida no atual contexto digitalizado, o Brasil também precisa de um plano e de propósito que reflita isso. Mas isso não se desenvolve de forma isolada, tampouco pelos interessados na manutenção do status quo.

Angelica Mari é jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.

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