“É um milagre a gente estar aqui hoje”, diz Rodrigo Oliveira, de 43 anos, quase como um desabafo, sentado em um dos seus cinco restaurantes na capital paulista. Alçado ao posto de um dos chefs mais consagrados do país, com reconhecimento internacional do Mocotó, o chef celebrou 50 anos do estabelecimento, completados no ano passado, fortalecendo cada vez mais suas raízes.
A semente dessa história de sucesso foi lançada pelo pai, Zé de Almeida, hoje com 85 anos, filho de uma família de 13 irmãos, que desistiu do sertão pernambucano e, aos 25 anos, trocou Mulungu, distrito de Sanharó (com pouco mais de 18 mil habitantes), pela Vila Medeiros, na zona norte de São Paulo. Um ano depois de chegar à cidade grande, em 1973, Zé montou a Casa Irmãos Almeida, em sociedade com dois de seus irmãos. Cinco anos mais tarde, ele assumiu sozinho as rédeas do negócio, transformando o endereço em um bar onde passou a servir pratos de sua terra natal.
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A sede continua ali, firme e forte, mas a ideia se expandiu mundo afora, servindo comida sertaneja de excelência, pratos típicos como sarapatel, favada e, claro, caldo de mocotó. O público é eclético: vai do motoboy do bairro ao presidente da República (Fernando Henrique Cardoso foi várias vezes, inclusive para celebrar o aniversário de 80 anos).
Rodrigo tem como lema “deixar o mundo um pouco melhor” – e o mundo dele está onde tudo começou: na Vila Medeiros. Sua dedicação não se resume à operação do Mocotó – pai de cinco filhos (entre 6 e 14 anos), ele atua em projetos sociais ao lado da esposa, a historiadora Adriana Salay. Entre eles, o Quebrada Alimentada – iniciativa que, desde 2020, já distribuiu mais de 100 mil refeições e 105 toneladas de alimentos para famílias vulneráveis do entorno do restaurante.
A seguir, trechos da conversa com o chef Rodrigo Oliveira.
Forbes – O Mocotó já tinha sete anos no seu nascimento. O que ele representou para você durante a infância?
Rodrigo Oliveira – Quando comecei a me entender por gente, já percebia o Mocotó como um pedaço de casa. Sempre foi uma extensão. E era onde meu pai passava a maior parte do tempo, então, era quase inevitável estar lá todos os dias. Eu, garoto ainda, com 13 anos, comecei a ajudar a lavar louça, limpar mesas, e só depois fui perceber que queria fazer isso para estar perto do Seu Zé – porque, realmente, para um adolescente, lavar louça não é o passatempo ideal, né? Lavei tanta louça que podia ganhar o título de “P(ia)hD” (risos).
Existe uma memória muito marcante do restaurante?
A mais forte que tenho é a da casa estar sempre cheia, movimentada – claro, era um lugar com só oito mesas, fácil encher o salão e o balcão. E dos sabores da cozinha do meu pai: muito cominho, coentro, as panelonas. Meu pai não teve escola: aprendeu tudo sozinho, na intuição. Por necessidade.
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Quando você se envolveu de vez?
Eu sentia que o Mocotó (antes mesmo de ter esse nome) estava se desfazendo. Simples não era bem a palavra: era precário mesmo. As instalações, os equipamentos, tudo. Era difícil vislumbrar um futuro ali, e não tinha estímulo do meu pai. A energia dele estava caindo, ele já falava de voltar para o sertão de vez… Eu pensei que, se não fizesse nada, aquilo ia se acabar. Na época, eu fazia faculdade de gestão ambiental e tinha aquele ideal quase ingênuo de salvar o mundo. Mas eu precisava primeiro começar com o meu mundo, né? Se não puder cuidar da minha casa, o que mais eu vou salvar? Acho que esse foi o gatilho.
E como foi esse processo de “salvar” o Mocotó?
Foi na intuição. Eu fazia as mudanças enquanto meu pai estava viajando, porque ele sempre foi avesso a qualquer coisa que eu tentasse incrementar ali. Em 2001, fiz a primeira grande reforma, que mudou a cara e o fluxo do restaurante, e tive que pedir dinheiro emprestado para um dos funcionários (que está com a gente há 43 anos) para pagar os pedreiros. Foi R$ 1 mil. O negócio foi se transformando. É um milagre estarmos aqui hoje.
Como crescer sem perder a sua aura?
É simples, mas não é fácil: são as pessoas. Parece papo do manual de gestão, mas é exatamente isso. Elas têm que incorporar os valores da causa e reproduzi-los. Hoje, a gente quer dar oportunidade e formar gente, mas como fazer isso depois de conseguir o time dos sonhos? Com novos negócios. E isso ainda gera riqueza para a Vila Medeiros: a cada novidade que abrimos fora, fortalecemos a casa original. Hoje o Mocotó tem uma estrutura digna de hotéis.
2023 foi o ano de abrir a segunda unidade de rua do Mocotó, na Vila Leopoldina. Por que demorou para expandir?
O Mocotó tem 50 anos no total, mas a história de profissionalismo, de quando a gente tinha mais noção do que estava fazendo, talvez sejam só 10 anos. Uma década que o restaurante ganhou alguma musculatura e a gente começou a afinar, a amadurecer as coisas. Nunca houve uma resistência [em expandir], mas a gente sempre procurava um contexto, um motivo que fosse maior que o negócio. Nunca fizemos um plano de negócios para nenhuma das aberturas [Mercado Municipal de Pinheiros e no Shopping D]. Foi feeling: essa é a causa, esse é o momento, com as pessoas certas. Então, vamos.
Como você define o Mocotó hoje?
O Mocotó é fruto de dualidades: tem a quebrada e o sertão; tradição e inovação; tem suas origens, mas com uma linguagem universal que faz o mundo inteiro hoje reconhecer valor gastronômico. Conseguimos oferecer uma experiência de excelência, mas inclusiva, que acolhe o maior número de pessoas possível. É uma mistura cheia de contrastes. Podemos dizer que ele é um restaurante de comida sertaneja autoral, pois adaptamos e criamos as nossas versões dos pratos típicos.
Como “pai” do dadinho de tapioca, você pensa nele como seu legado?
Um amigo me perguntou há pouco tempo: “Já parou pra pensar que você, seus filhos e seus netos vão morrer e o dadinho vai continuar?”. Não costumo pensar muito na morte, mas isso me deu um estalo de “caramba, tem uma chance de o dadinho durar pra sempre”. As pessoas não vão deixar de fazer, e ele está em todos os continentes – já vimos desde barraca em Copacabana vendendo espeto de dadinho até no restaurante Enigma, do chef Albert Adrià, em Barcelona.
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O que você faz quando não está no restaurante ou tentando salvar o mundo?
Cuidando das crianças ou plantando (risos). A gente tem um sítio no Vale do Paraíba com pomares agroflorestais, estufas, galinhas, cordeiros, vacas leiteiras, um pouco de tudo. Também adoro literatura, cinema, música. Tenho ouvido muito rap ultimamente, sempre gostei de músicas de origem negra. O primeiro ritmo que me pegou foi reggae. Fiquei vidrado em Bob Marley, Peter Tosh, Gregory Isaacs. Depois, fui parar no blues e jazz, comecei a prestar mais atenção no samba, rap, bossa nova… E tem novos cantores nordestinos que fazem na música o que eu almejo fazer na cozinha, pegando elementos tradicionais e dando um toque autoral, como Juliana Linhares – piro nela, ouço pelo menos uma ou duas músicas por dia –, Rachel Reis, BaianaSystem, Duda Beat.
Você cozinha quando está em casa? O que gosta de comer?
É sempre uma disputa em casa, porque quero cozinhar e a Dri não quer ver bagunça na cozinha (risos). Mas normalmente faço os cafés da manhã e os jantares. De manhã, tem sempre o cuscuz, os pães que a gente faz lá no Mocotó, tapioca, macaxeira cozida com queijo de coalho dourado na chapa. O jantar é bem variado: carnes na brasa, arrozes, macarrão – eu adoro macarrão. E as crianças adoram cozinhar também, principalmente a Flor [13 anos] e o Pedro [8], os dois nascidos no mesmo dia – não sei se tem uma explicação cósmica nisso. Mas eles são apaixonados pela cozinha, já têm uma baita autonomia para preparar, sozinhos, uma refeição completa.
Então, você não se cansa de cozinhar?
Vou te contar algo que falei para poucas pessoas: atualmente, tenho cozinhado muito mais em casa do que no restaurante. As demandas lá são tão variadas que o tempo da cozinha acaba sendo o menor do dia. E, na verdade, cozinhar é a parte mais fácil – e mais legal do negócio. Ficar menos tempo na cozinha do restaurante já me incomodou muito mais. Mas fui vendo que esse trabalho é o que garante que todo o time consiga desempenhar bem o seu trabalho, para crescer, desenvolver outras habilidades. Nossa cozinha de pesquisa e inovação, o Engenho Mocotó, é onde mais tenho participado ultimamente. Acho que estou em uma nova fase de carreira.
Existe algum plano de ampliação dos restaurantes do Mocotó?
Toda vez que abrimos um restaurante, falamos que vai ser o último. Mas passa um tempo e você começa a pensar “quem sabe?”. Tem tantos lugares especiais em São Paulo que a gente ama [para abrir uma nova unidade]. O centro é um que a gente olha com muito carinho, e acho que é muito importante para a cidade que ele floresça de novo. O importante é gerar riqueza para a Vila Medeiros: cada vez que abrimos uma casa fora, fortalecemos a original – contratando mais gente, promovendo outros a líderes. Mas, no momento, não temos planos.
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O Mocotó voltou para a lista do Latin America’s 50 Best, como o 63º melhor restaurante da região, depois de ter saído em 2022. Que importância você dá aos prêmios?
No geral, a importância percebida é muito maior do que a real. Não trabalhamos por isso, porque é muito frustrante: é simplesmente impossível apontar o melhor restaurante do mundo. O que gosto de pensar é de quando ganhamos a primeira estrela Michelin. Me marcou muito uma coisa que a nossa chef confeiteira falou: nunca trabalhamos para ganhar, mas para merecer e nos sentirmos satisfeitos com nosso trabalho. Sobre o 50 Best, foi inédito sairmos da lista – o Mocotó está desde a primeira edição, já foi o 12º lugar. Em 2021, a gente estava em 23º, se não me engano – é tão importante que não lembro (risos). Já no ano passado, não estávamos nem entre os 100. E você tem todo o direito de achar o Mocotó bom ou ruim, mas uma coisa garanto: ao longo do tempo, ele tem melhorado, de pouquinho em pouquinho, detalhe a detalhe, seja nos produtos, nas técnicas ou no ambiente, a gente vem evoluindo.
LINHA DO TEMPO DO MOCOTÓ
- 1963 – Zé Almeida sai do sertão de Pernambuco aos 25 anos, fugindo da seca e da fome.
- 1973 – Junto com mais dois irmãos, Seu Zé abre a Casa do Norte Irmãos Almeida, na Vila Aurora. Depois, eles se separam e Zé Almeida fica com a casa da Vila Medeiros.
- 1980 – Nasce Rodrigo Oliveira, segundo filho de Zé Almeida e Dona Lourdes.
- 1993 – Rodrigo começa a ajudar o pai no negócio lavando pratos, atendendo os clientes e desafiando Seu Zé com novas ideias.
- 2005 – Rodrigo cria um dos seus pratos mais conhecidos: o dadinho de tapioca.
- 2013 – Mocotó passa por sua maior reforma e é o 16º colocado no prêmio Latin America’s 50 Best.
- 2020 – Nascem dois projetos: o Quebrada Alimentada, ação de assistência alimentar em resposta à crise da pandemia, e o sítio Mulungu, em São José dos Campos, para produzir alimentos orgânicos e agroecológicos.
Entrevista publicada na edição 115 da revista, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.