Inteligência de dados, teleatendimento e segurança da informação são cruciais para o entendimento da saúde de populações, sobretudo em um cenário de pandemia. O bem-estar e a jornada de cuidados sanitários são protagonistas nos debates e investimentos privados e públicos em saúde em todo o mundo.
Esses elementos trazem o que especialistas consideram uma janela de oportunidade para ampliar o acesso, dar qualidade ao atendimento e criar uma cultura preventiva em países como o Brasil, incluindo na equação a diminuição de desigualdades. “A pandemia nos forçou a evoluir e, como em todo momento de crise, é deixado um legado de aprendizados em diversos planos para estudos futuros”, comenta Jaqueline Goes de Jesus, biomédica responsável pelo mapeamento do genoma do novo coronavírus no Brasil. A especialista, coordenadora da equipe que sequenciou o genoma viral SARS-CoV-2 apenas dois dias depois do primeiro caso confirmado no país, ganhou notoriedade em todo o mundo. Ela e outras profissionais seguem numa atuação ininterrupta, reconhecendo a deficiência do país no campo científico.
Jaqueline observa que a rota para o futuro da saúde e da qualidade de vida começa pela pesquisa. “Ciência não se faz da noite para o dia”, afirma. “Vamos sentir o efeito da falta de investimento no país daqui a dois, três anos, quando precisarmos de conhecimento sobre doenças e não vamos ter. Entender que ciência não é gasto, e sim investimento, será decisivo.” Somente em 2019 estudantes negros passaram a ser maioria nas universidades públicas, segundo o censo da educação superior – embora apenas 16% do universo de docentes tenha se declarado negro. A ausência da população negra nas academias impacta na produção científica e na formulação de protocolos mais inclusivos e que contemplem a diversidade da população, com suas especificidades. “Sempre há impacto quando não tem representatividade”, continua Jaqueline. “Mas seria uma mentira dizer que não se estuda a população negra, que representa 56% dos brasileiros.”
Atendendo a demandas específicas
A pesquisa ultrapassa os limites dos laboratórios. A capacidade de compreender o comportamento e as fragilidades de populações, especialmente a população negra – a mais afetada pelas consequências da pandemia –, é possível no acompanhamento do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo atendimento de 71,5% dos brasileiros, ou seja, mais de 150 milhões de pessoas, segundo divulgou, no ano passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para Luiz Eduardo Batista, coordenador do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador científico do Instituto Adolf Lutz, “existe uma dificuldade na tradução do conhecimento para incorporação na gestão da saúde”.
Batista conta que a Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo começou a usar informações coletadas por agentes públicos de saúde para um entendimento mais completo das populações. Segundo ele, a atuação territorial desses profissionais deveria ser mais bem utilizada nas ações de combate à pandemia, pois conhecer as comunidades e os territórios ajuda na tomada de decisão. “Havia uma ideia que considerava apenas a idade para a definição da vulnerabilidade. Então me perguntaram quem são os vulneráveis que deveriam ter prioridade na imunização”, conta Batista. “Respondi: pessoas em situação de rua, indígenas e quilombolas, além dos idosos. Apresentei a vulnerabilidade pela perspectiva racial.”
Segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas), a mortalidade de recém-nascidos antes dos seis dias de vida, infecções sexualmente transmissíveis, mortes maternas, hanseníase e tuberculose são alguns dos problemas de saúde evitáveis mais frequentes entre a população negra – tanto em comparação ao contingente branco quanto em relação às médias nacionais.
A conclusão da ONU indica que, além de estarem mais expostos ao risco de morte violenta intencional, negros e negras também integram o grupo de brasileiros que têm, em geral, piores indicadores de saúde. A resposta para esse cenário foi a formulação da Política Nacional de Saúde Pública da População Negra, na qual o Ministério da Saúde recorreu a estudos que evidenciam essas desigualdades, estabelecendo um diálogo com os movimentos sociais por meio do Comitê Técnico de Saúde da População Negra.
“Menos de 10% dos municípios no país adotaram essas medidas”, informa Batista, alertando para o negacionismo da questão racial. “Seria fundamental, no momento pelo qual passamos e no futuro, pessoas que pensem e conheçam a temática racial considerando os territórios. Não pode haver uma negação do racismo na gestão pública e no agir público.”
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Desdobramentos da telemedicina
Outro desafio posto à prova no ano passado foi o atendimento médico durante as restrições impostas pelo distanciamento social. Na pesquisa “Conectividade e Saúde Digital na Vida do Médico Brasileiro”, realizada pela Associação Paulista de Medicina com profissionais de todo o país no início de 2020, 62% dos entrevistados responderam que utilizam alguma tecnologia de armazenamento de dados de pacientes e/ou compartilhamento de informação em suas clínicas ou hospitais. Questionados sobre a relação entre telemedicina e suas carreiras, 44% veem esse campo como uma oportunidade e outros 24% acreditam, também, que se trata de uma oportunidade, mas em um futuro mais distante. Para a dermatologista Katleen da Cruz Conceição, especialista em pele negra, a liberação da telemedicina possibilitou atender pacientes do Rio de Janeiro ao Paquistão. “Presencial ou online, meu compromisso é entregar muita informação nas consultas. E o uso da internet, tanto para atendimento como em lives, ajudou a me conectar com mais pessoas.”
A especialista conquistou mais de 200 mil seguidores nas redes sociais e atende diversas celebridades. Em 20 anos de carreira, participou da mudança no mercado de cuidados pessoais para peles pretas e pardas. Katleen aponta desigualdades no reconhecimento profissional e na representatividade entre a classe médica. “Comecei a especialização em pele negra depois de me formar. Surgiram muitos negros e negras no meu consultório por indicação dos colegas,” conta.
Katleen ganhou notoriedade dentro e fora da classe médica investindo na educação de seu público, algo que vai além do cuidado com a pele. A médica também ensina sobre autoestima. “Hoje uma pessoa negra pode chegar em qualquer clínica dermatológica e saber o que perguntar para o médico, porque já me ouviu falar. Isso faz com que elas exijam um atendimento competente dos profissionais, o que lhes é de direito. Podem chegar em uma loja e comprar produtos adequados, pois sabem o que querem”, afirma a especialista. “Depois de tanto que nos foi negado, hoje sabemos o que queremos – e não aceitamos nada menos do que o melhor.”
PODE SER REMOTO, MAS TEM QUE SER HUMANO
O desenvolvimento de alternativas tecnológicas que estabelecem pontes entre profissionais da saúde e pacientes negros apresenta a possibilidade de preencher lacunas estruturais no atendimento, além da criação de futuros inclusivos em ecossistemas que desenvolvem essas soluções de saúde e em empresas que oferecem assistência médica a seus colaboradores.
A plataforma AfroSaúde, startup de impacto social focada em desenvolver soluções de saúde para a comunidade negra, lançou em 2020 o produto TeleCorona, um serviço telefônico para consultas multidisciplinares que acolheu mais de 400 famílias em todo o país. “A tecnologia serve para aumentar o acesso. Mas não substitui o atendimento humanizado”, aponta o cofundador da startup, Igor Leonardo Rocha. “Esse é um ponto de que não podemos abrir mão, porque a humanização é aquilo que é tirado dos negros e negras com o racismo. Pode ser remoto, mas tem que ser humano,” define o empreendedor.
A saúde mental é o principal desafio apontado pelos usuários da plataforma. O racismo estrutural provoca severos danos, e a solução muitas vezes está em se reconhecer no terapeuta pela cor da pele. “Como tratar o racismo se o psicólogo não compreende o que é racismo ou, muitas vezes, não acredita que ele existe? A identidade de pele nesse caso já deixa clara uma empatia e sororidade”, diz Rocha.
O risco dos vieses
A tecnologia aproximou pessoas e serviços e trouxe a capacidade de compreender a saúde das populações com o uso de dados. A inteligência artificial e o aprendizado de máquina supervisionado tornaram-se aliados no tratamento preventivo, consolidando-se como pilares para o futuro da saúde e trazendo novos perfis profissionais para o mercado.
O crescimento do segmento de empresas nativas digitais atuantes na saúde é evidência do potencial da tecnologia como aliada em áreas como atendimento. No Brasil, foram mapeadas 542 startups com foco em saúde, todas com menos de cinco anos de existência e gerando 10 mil empregos, segundo o levantamento Health Tech Report 2020, realizado pela plataforma de inovação Distrito. Para Guilhermino Afonso, mestre em engenharia biomédica e CEO da plataforma Wellbe, que faz gestão da saúde populacional de 250 mil pessoas, a tomada de decisão baseada em inteligência de dados garante proatividade para as empresas e condições para o acompanhamento e prevenção de doenças para as pessoas. No entanto, o empreendedor alerta que é preciso ter atenção para que a análise dos dados coletados não sofra nenhum tipo de viés racista.
“Falamos da digitalização de processo. A inteligência de dados nesse caso tem como foco o bem-estar, proporcionando escala ao modelo de políticas públicas, como os programas Médico em Casa e Médico da Família, que estimulam a saúde preventiva e traçam um perfil de risco da comunidade.” Outra chance dada pela tecnologia, além de aumentar a capacidade de atendimento e possibilitar a solução da baixa densidade média por habitante em algumas regiões do país, é a criação de um ecossistema de healthtechs que pode e deve ser mais diverso e representativo.
“Todo o meu trabalho como engenheiro é voltado para saúde, e isso é uma possibilidade que nunca poderia imaginar”, observa o fundador. “Além da possibilidade da representatividade racial no desenvolvimento de plataformas, por ser negro atuando com tecnologia, a diversidade de conhecimentos contribui muito na busca por soluções.”
A responsabilidade das empresas
Entre os brasileiros, 24,25% são beneficiários de planos de assistência médica, de acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Estima-se que mais da metade desse total são planos corporativos. Ou seja, cada vez mais empresas e organizações influenciam na qualidade de vida dos funcionários. Ruth Helena dos Santos, gerente de saúde ocupacional do Grupo Boticário e membro do Grupo de Afinidades, Raça, Etnia, Diversidade e Inclusão da organização, acredita que o papel das empresas no presente e no futuro está além da oferta de benefícios. “Promover a equidade racial, de gênero e de gerações não é apenas abrir a porta. As pessoas querem entrar e ficar. Por isso é importante ter desenhos estratégicos”, afirma.
Segundo Ruth, muitas vezes é no ambiente profissional que as pessoas encontram pela primeira vez a oportunidade de cuidar da saúde. Por isso o suporte e a valorização são gestos que se estendem a toda a família do colaborador.
No ano de 2020, a fisioterapeuta observou de maneira positiva um aumento no número de atendimentos na central de psicoterapia online oferecida pela empresa. Segundo ela, isso demonstra relevância no acolhimento proposto pelo grupo. “As empresas de agora e do futuro têm um papel social e enxergam a saúde física e emocional dos colaboradores como investimento.”
OS DESAFIOS DA PANDEMIA – E ALÉM
Em meio ao agravamento da pandemia, profissionais negros que atuam no front e na retaguarda dessa guerra enfrentam dia após dia batalhas sem trégua, suportando o impacto físico e mental de uma luta inglória cujos estilhaços atingem mais dolorosamente as mulheres negras que atuam na linha de frente no combate à Covid-19. Além do cansaço, da frustração e do medo, esses profissionais enfrentam outra arma igualmente destrutiva: a disseminação de notícias falsas. A veiculação e o compartilhamento de informações não verdadeiras na área médica e científica, por meio das redes sociais, de blogs, sites ou aplicativos de mensagens, trouxeram sérias consequências à saúde individual e coletiva: 62% dos brasileiros não conseguem reconhecer uma notícia falsa, segundo o estudo Iceberg Digital, desenvolvido pela Kaspersky, empresa global de cibersegurança.
Os impactos da chamada infodemia (excesso de informações, algumas precisas e outras não, que torna difícil a busca por fontes idôneas e orientações confiáveis) e da desinformação (a informação falsa ou imprecisa com intenção deliberada de criar enganos) podem envolver, por exemplo, tratamentos questionáveis para a Covid-19, alterações metabólicas do indivíduo e a cobertura vacinal. A divulgação de notícias sem o devido embasamento da ciência preocupa a mestre em políticas públicas Suellen Rodrigues, diretora associada de valor em saúde da indústria farmacêutica MSD na América Latina. Para ela, o combate a fake news demanda um letramento em saúde, processo que consiste em versar sobre temas complexos e simplificá-los. “Nosso país apresenta níveis altos de analfabetismo funcional, e esse ponto impacta diretamente na compreensão de mensagens e na adesão a ações de autocuidado em saúde.”
A cobertura vacinal atual contra o sarampo e a poliomielite, doenças que eram consideradas erradicadas no Brasil, está abaixo da meta estabelecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que é de 95% das crianças até os 5 anos de idade. Isso torna fundamentais as iniciativas que visam orientar e conscientizar os profissionais de saúde. “Vejo que, como parte integrante da sociedade civil, a iniciativa privada, incluindo a indústria farmacêutica, deve e tem buscado fazer sua parte quanto ao enfrentamento das fake news”, afirma Suellen.
Exaustão
De acordo com os resultados da recente pesquisa Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19, realizada pela Fiocruz em todo o território nacional, a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% desses trabalhadores. Alessandro Jatobá, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e um dos integrantes da pesquisa, explica que o impacto na rotina vai do excesso de trabalho ao abalo das relações pessoais pelo medo do contágio, aumentando a sensação de isolamento que os profissionais sentem nesse momento. Outro dado é que mais de 40% dos pesquisados afirmam não se sentirem protegidos no ambiente de trabalho, indicando a baixa qualidade dos equipamentos de proteção individual e a falta de apoio institucional. “Para mitigar esses desafios, é preciso fortalecer o apoio das instituições, garantir equipamentos que sejam adequados à prática e manejo de pacientes e criar jornadas confortáveis de trabalho, apesar da urgência.”
Jatobá destacou que os participantes da pesquisa que se autodeclararam pretos ou pardos representam 46% dos enfermeiros entrevistados, 20,3% dos médicos, 30% dos farmacêuticos, 23% dos odontólogos e 35% dos fisioterapeutas pesquisados. “Podemos afirmar que, entre os trabalhadores que estão atuando na linha de frente do combate à pandemia, temos uma presença significativa de trabalhadores pretos e pardos. E, como todos os outros profissionais, estão adoecendo.”
O recorte sobre o impacto da pandemia em profissionais de saúde negros é ainda mais alarmante. Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2020 mostrou que as profissionais de saúde negras estão com a saúde mental mais debilitada pela crise. Além disso, sentem-se menos preparadas para trabalhar durante a pandemia e sofrem mais com assédio moral. Claudete Rosa do Nascimento, auxiliar de enfermagem que atua na rede pública e é integrante da Comissão de Ética de Enfermagem do Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, em São Paulo, observa que, além do desafio da cor da pele, a idade também é um obstáculo para essas profissionais. “Entre enfermeiras e auxiliares da rede pública, a maioria são pessoas negras – nos hospitais particulares, não. Quando olhamos para a classe médica, a presença de pessoas negras é rara.”
Quanto ao assédio moral durante a pandemia, 38% das profissionais de saúde negras dizem ter passado por essa situação, índice maior do que o de homens negros (32%), de homens brancos (25%) e de mulheres brancas (34%). “O processo de valorização que a pandemia trouxe aos profissionais de saúde foi importante. Antes era pressão, cobrança e maus-tratos por parte dos usuários da rede pública. Agora ouvimos ‘obrigado’. Espero que isso se mantenha no futuro”, conclui Claudete.
Reportagem publicada na edição 85, lançada em março de 2021
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