Mais de uma dúzia de fortunas europeias tem ligação com o nazismo

2 de abril de 2019
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Mais de uma dúzia de bilionários europeus e suas famílias, cujas raízes empresariais antecedem a Segunda Guerra Mundial, tiveram laços com o nazismo por meio de contratos, trabalho escravo e apropriação de bens roubados, entre outras iniciativas

Resumo da matéria:

  • Família alemã dona de marcas como Krispy Kreme, Panera Bread e Pret a Manger admitiu ter participado e lucrado com o regime nazista;
  • Mais de uma dúzia de bilionários europeus e suas famílias, cujas raízes empresariais antecedem a Segunda Guerra Mundial, obtiveram vantagens com contratos e fornecimento de mão de obra escrava;
  • Eugène Schueller, avô da mulher mais rica do mundo, Françoise Bettencourt Meyers, e fundador da L’Óreal, teria sido um conhecido antissemita. Multinacional francesa supostamente prosperou sob o Terceiro Reich;
  • A alemã Bertelsmann se juntou a 6 mil empresas alemãs para o pagamento coletivo de US$ 4,5 bilhões a pessoas que foram vítimas do trabalho escravo nazistas;
  • Magnatas anti-nazistas escolheram trabalhar para o regime para não perder seus negócios ou colocar a si mesmos e suas famílias em perigo.

Na semana passada, a bilionária família alemã Reimann, detentora da JAB Holdings, dona dos donuts Krispy Kreme, da rede de padarias e lanchonetes Panera Bread e da cadeia de fast food Pret a Manger, admitiu lucrar e participar dos abusos nazistas e do trabalho escravo durante o regime.

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O reconhecimento veio depois que o jornal alemão “Bild” informou que Albert Reimann Sr. e Albert Reimann Jr., ambos já falecidos, eram membros ativos do Partido Nazista e usavam civis russos e prisioneiros de guerra franceses como escravos durante a Segunda Guerra Mundial. A família, que inclui quatro herdeiros bilionários de Reimann Jr., com fortuna estimada em US$ 3,7 bilhões cada, planeja doar cerca de US$ 11 milhões para uma “organização conveniente”, segundo Peter Harf, porta-voz dos herdeiros, mas ainda não anunciou quais seriam elas. Harf também afirma que a família procurou entender seus laços ancestrais com o nazismo, contratando, em 2014, o historiador alemão Pauk Erker para estudar a conexão. O trabalho do profissional continua em andamento e deve ser concluído em 2020, disse um porta-voz à Forbes.

Mas os Reimann não estavam sozinhos na participação em atividades nazistas ou na obtenção de lucro com o regime. Mais de uma dúzia de bilionários europeus e suas famílias, cujas raízes empresariais antecedem a Segunda Guerra Mundial, tiveram laços com o nazismo por meio de contratos, trabalho escravo e apropriação de bens roubados, entre outras iniciativas. Eles incluem Klaus Michael Kuehne, da Kuehne e Nagel, e Heinz Hermann Thiele, da Knorr-Bremse AG.

“Esse tipo de história nunca é uma surpresa. Em 1944, um terço de toda a força de trabalho na Alemanha era escrava. Isso significa que quase todas as empresas que produziam na época foram, de uma forma ou de outra, envolvidas com a economia de guerra”, diz Roman Köster, historiador alemão. “Desde 1942, ficou muito complicado para as empresas alemãs manter uma produção que não tinha relação com a guerra.” Ele acrescenta que as descobertas da Bild no caso da família Reimann são piores que outras devido ao abuso e maus-tratos desses trabalhadores, embora um porta-voz da família diga que Albert Reimann e Albert Reimann Jr. não atacaram pessoalmente nem prejudicaram nenhum funcionário.

Muitas dessas empresas bilionárias reconhecem abertamente a questão e se desculparam por esse envolvimento, embora sejam raras as respostas comunitárias.

“Com o passar do tempo, fica cada vez mais difícil formular um argumento legal em torno de reparações, a menos que o requerente possa mostrar provas conclusivas dos danos causados pelos antepassados ​​do réu”, diz Karthik Ramana, professor de negócios e políticas públicas da Universidade de Oxford, cuja pesquisa também abrange ética. “O que resta para os requerentes potenciais é a persuasão moral – mas eu não apostaria em uma enxurrada de reparações.”

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Como o fundador bilionário da Ikea, Ingvar Kamprad, disse à Forbes em 2000 sobre seus laços adolescentes com o Partido Nazista, “talvez até você tenha feito algo em sua juventude que agora você sabe que é estúpido. Por que eu não revelei essa loucura do passado? Simples: isso prejudicaria o meu negócio”. Kamprad morreu em 2018 e seus três filhos, todos bilionários, herdaram parte do império Ikea, especializado em móveis populares, e estão entre aqueles cujos membros da família tinham ligações com o nazismo.

As empresas não lucravam apenas com o trabalho forçado. “Era comum os contratos com empresários que estavam no círculo de amizade dos líderes da SS ou tinham outras conexões”, diz Christopher Kopper, professor alemão de economia e história dos negócios.

Françoise Bettencourt Meyers, a mulher mais rica do mundo, com US$ 53,3 bilhões, herdou uma participação de quase US$ 50 bilhões na gigante de beleza L’Oréal, uma empresa que supostamente prosperou sob o Terceiro Reich. O francês Eugène Schueller, fundador da L’Oréal e avô de Françoise, teria sido um conhecido antissemita.

Mais notável foi o fato de que Schueller teria estabelecido uma parceria entre a fabricante de tintas e vernizes Valentine, onde era codiretor, e a empresa alemã Druckfarben para fornecer tinta para a Marinha alemã. Entre 1940 e 1943, as declarações de impostos de Schueller mostraram que sua renda aumentou quase dez vezes, de 248.791 para 2.347.957 francos, segundo o livro “The Bettencourt Affair” (“O Caso Bettencourt”, em tradução livre), de 2017. Mais tarde, o fundador da L’Oreal foi acusado de colaboração econômica e política com os nazistas, mas nunca chegou a ser condenado. A marca se recusou a comentar o assunto.

Enquanto Schueller operava na França, as empresas alemãs tinham muito mais ligações com os nazistas. “Como a maioria dos alemães, grande parte dos empresários agiu de maneira oportunista”, diz Kopper.

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O trabalho sem remuneração das pessoas capturadas pelos nazistas – em campos de concentração ou como prisioneiras de guerra – era outra maneira de as empresas lucrarem com o conflito. A família Quandt, que é a maior acionista da montadora alemã BMW e inclui o bilionário Stefan Quandt, com fortuna estimada em US$ 17,3 bilhões, e Susanne Klatten, com US$ 20,1 bilhões, também tinham ligações com o regime.

O patriarca da família, Gunther Quandt, e seu filho Herbert (avô e pai de Stefan e Susanne) empregaram cerca de 50 mil trabalhadores escravos de campos de concentração nazistas nas fábricas da família durante o Terceiro Reich, segundo o documentário alemão “Das Schweigen der Quandts” (“O Silêncio dos Quandts”). Os escravos eram fornecidos em contratos com o exército nazista, especificamente em troca de baterias, armas de fogo e munição, por meio da empresa Accumulatoren Fabrik AG, de propriedade dos Quandts. A família também adquiriu (sem pagar) uma série de negócios judeus confiscados pelo regime nazista – uma prática de apropriação que não era incomum, seja de propriedades, negócios ou peças de arte roubadas.

A BMW, da qual a família Quandt se tornou acionista majoritária após a Segunda Guerra Mundial e que responde pela maior parte de sua riqueza, lucrou separadamente com o trabalho forçado e com o regime, já que forneceu armas ao exército alemão, segundo o site da própria companhia. Um porta-voz da família Quandt não respondeu ao pedido de entrevista, mas como a BMW comemorou seu centenário em 2016, a empresa divulgou um comunicado dizendo que “até hoje, o enorme sofrimento causado e o destino de muitos trabalhadores forçados permanece como questão de mais profundo arrependimento”. A empresa deu dinheiro à Iniciativa da Fundação Alemã para a Economia, que forneceu compensação para antigos trabalhadores que foram escravizados.

O conglomerado alemão de mídia Bertelsmann lucrou com o trabalho escravo e com outros meios mais diretos. Antes da Segunda Guerra Mundial, a empresa – cuja vice-presidente, Elisabeth Mohn, atualmente acumula fortuna de US$ 3,2 bilhões – era uma editora relativamente pequena. Mas, no final da década de 1920, começou a publicar e lucrar com textos antissemitas, nacionalistas e nazistas, segundo o arquivo da empresa. Logo se tornou o principal fornecedor de livros para as forças armadas alemãs, com publicações de bolso que eram populares entre os soldados. Para aumentar sua margem de lucro, a companhia provavelmente usou o trabalho escravo judeu para confeccionar os livros, segundo informações de um relatório encomendado pela Bertelsmann em 1998. Heinrich Mohn, sogro de Elisabeth e filho do fundador da editora, não era um membro do Partido Nazista, mas se beneficiou do crescimento econômico do regime, diz Kopper.

A Bertelsmann, desde então, tem trabalhado para reparar suas ações do passado. Em 2000, juntou-se a 6 mil empresas alemãs para o pagamento coletivo de US$ 4,5 bilhões a pessoas que foram vítimas do trabalho escravo nazista. Elisabeth Mohn, uma importante filantropa, tem se esforçado para promover relações entre judeus e alemães, enquanto seu falecido marido, Reinhard Mohn, foi um dos primeiros a estabelecer uma comissão independente para analisar a história da empresa com o partido nazista, segundo porta-voz da empresa.

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Alguns líderes empresariais europeus evitaram arduamente trabalhar com os nazistas. O francês Marcel Dassault – cujos netos Olivier, Thierry, Laurent Dassault e Marie-Hélène Habert, cada um com US$ 6 bilhões – construiu aviões de combate e bombardeiros para o exército francês durante o início da Segunda Guerra Mundial, segundo a história da empresa. Mas depois que a Alemanha assumiu o controle da França, Dassault – que teria sido judeu (mais tarde se converteu ao catolicismo e mudou seu sobrenome de Bloch para Dassault) – recusou-se a cooperar com o novo regime. Ele foi preso pelo Governo de Vichy e rotulado de “indivíduo perigoso para a defesa nacional e segurança pública”. Dassault acabou por ser enviado para o campo de concentração de Buchenwald, onde lhe foi oferecido um emprego como administrador de uma fábrica em troca de liberdade. O francês recusou a oferta e permaneceu no campo até ser libertado em 1945.

Mas até mesmo alguns magnatas anti-nazistas escolheram trabalhar para o regime em vez de perder seus negócios ou colocar a si mesmos e suas famílias em perigo. Tanto Kopper quanto Köster apontam para o empresário de engenharia Robert Bosch, cujo filho, Robert Jr., e sua família possuíam fortuna estimada em US$ 4,6 bilhões em 2006.

“Fico feliz que os judeus, turcos e budistas tenham seus próprios deuses… Desde que sejam boas pessoas, eu também os amo”, escreveu Bosch em 1885 em uma carta à noiva. Ele se tornou membro fundador da Verein zur Abwehr des Antisemitismus, uma organização similar à Liga Antidifamação dedicada ao combate ao antissemitismo, em Stuttgart, em 1926, segundo o historiador da Bosch.

“O próprio Bosch e partes da equipe administrativa eram estritamente contra Hitler e até apoiavam grupos de resistência”, diz Köster. “No entanto, a empresa estava profundamente envolvida na economia de guerra e empregava milhares de trabalhadores forçados e, muitas vezes, não os tratava com dignidade.”

A empresa admite que esteve “envolvida no rearmamento” do Terceiro Reich. Um porta-voz confirma que a Bosch empregava cerca de 20 mil trabalhadores escravos e tinha contratos com o Partido Nazista. Mas também ajudou a resgatar associados judeus e apoiou o movimento de resistência, fornecendo dinheiro para ajudá-los a emigrar ou contratando-os para evitar a perseguição.

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Assim, embora o caso de Reimann possa ser perturbador, seria insensato acreditar que é raro. Um número de famílias europeias há muito tempo bem abastadas – para não mencionar inúmeras empresas importantes que ainda existem, mas que não têm ligações bilionárias – tem histórias marcadas por sua relação com o regime nazista.

“Você teria muita dificuldade em encontrar empresas ‘inocentes’ naquela época”, diz Köster.

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