Isso me levou ao pensador francês Edgar Quinet (1803-1875), que assinalou: “A democracia tem necessidade de justiça, enquanto a aristocracia e a monarquia podem passar bem sem ela”. De fato, os dois casos sobre os quais vou discorrer levantaram questionamentos sobre a democracia e, claro, sobre a justiça.
O primeiro aconteceu na apuração dos votos na eleição norte-americana. O mundo acompanhou boquiaberto a acirrada disputa entre Joe Biden e Donald Trump. Mais do que o resultado, chamaram atenção as particularidades do processo eleitoral americano. Para nós, brasileiros, acostumados ao sistema eletrônico de votação e a conhecer o resultado em horas apenas, o voto em cédula de papel e a contagem manual nos remeteram a uma contradição contemporânea absurda no país que colocou o mundo na era digital.
À mesma época, estourou uma bolha de comoção nacional após parte de um julgamento em Santa Catarina viralizar nas redes. Nas imagens, via-se uma jovem ser confrontada de forma vexatória por um advogado na frente da defensoria pública e do juiz. A jovem Mariana Ferrer era a possível vítima de um crime de estupro. A opinião pública nacional viu ali um comportamento machista, violento e humilhante praticado pelo advogado de defesa do homem acusado de estupro, e uma flagrante inércia do juiz e do promotor. Infelizmente, esse tipo de abuso não é exceção no cotidiano forense. A grande diferença é que, na maioria das vezes, as vítimas são pobres, pretas ou ambas.
Aqui, não pretendo analisar o acerto do julgamento apenas em razão do resultado favorável ao acusado — cabe à sociedade exigir sempre do Direito Penal a garantia de um processo justo e legítimo — mas, sim, apontar que esse tipo de situação é incompatível com um sistema de justiça que se pretende inclusivo e equitativo no Estado democrático de direito. Pressupõe-se dignidade de tratamento.
Da mesma forma que a confiança coletiva americana pode ter sido abalada pelo processo eleitoral de 2020, o episódio protagonizado em Santa Catarina deixou evidente o desamparo à vítima e o desserviço no combate à violência pelo sistema judiciário.
Nelson Wilians é CEO da Nelson Wilians & Advogados Associados
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