Nas aulas de redação, no entanto, a história era outra. Aliás, muitas histórias. Eu preenchia as páginas do papel numa velocidade que parecia maior do que a do meu pensamento – e só sabia completamente o que estava escrevendo quando acabava. Tramas fantásticas, conexões bem amarradas. Aí, sim, minha criatividade jogava a favor.
O que aprendi com isso (além de reconhecer minhas habilidades e inabilidades natas), é que a criatividade precisa de estrutura para gerar um belo produto. E no meu caso, essa estrutura mora no sistema de palavras limitado por um número de letras e suas combinações. Um mundo amplo o bastante para me desafiar a construir autoria; mas limitado o suficiente por regras que me salvam da possibilidade de deformar minha arte.
Um exemplo que continua atual – um século depois –, é o da criação de uma máscara protetora facial, acessório que se tornou parte da rotina de todos nós no último ano. O inventor da máscara cirúrgica considerada a precursora da N95 (um dos modelos mais recomendados por especialistas durante a pandemia da Covid-19) foi o epidemiologista Wu Lien-teh, nascido em 1879. Em 1910, quando uma epidemia desconhecida atingiu o noroeste da China, Wu, que trabalhava no Imperial Army College da China, foi nomeado pelo governo para investigar a doença. Descobriu que era uma peste pneumônica contagiosa, que poderia ser transmitida por via respiratória. Para proteger as pessoas dela, projetou uma máscara cirúrgica, feita de algodão, gaze e camadas de pano, para limitar a disseminação da doença. Em outras palavras: um cientista, impulsionado por uma necessidade prática, usou sua criatividade para inventar um produto artesanal e eficaz, que foi essencial para o fim daquela pandemia, decretada em abril de 1911. Sua criação ganhou ainda mais relevância nos dias de hoje, quando o mundo todo luta contra outra doença comum.
Falando agora do ambiente empresarial brasileiro, a história da Ambev é cheia de invenções nascidas da criatividade pragmática de seus donos e funcionários. Constatei isso enquanto estudava a evolução da companhia, sua cultura corporativa e método de gestão, para a biografia que escrevi da maior cervejaria do mundo. Primeiro, as nada triviais fusões e aquisições que foram formando a companhia: três banqueiros, que não tinham conhecimento da indústria, compraram uma cervejaria obsoleta e aplicaram um estilo de gestão que se tornou referência no país e influenciou um sem número de organizações: escritórios abertos, todos sentados juntos, traje informal, gestão e revisão constantes de orçamento e remuneração variável atrelada a metas.
Dez anos depois, a fusão com a rival Antarctica formou a Ambev quando esse tipo de operação não era comum no Brasil e gerou muita polêmica. Em 2004, a união com a belga Interbrew criou a Inbev. Nessa etapa, o que aconteceu, resumidamente, foi que o trio de banqueiros convenceu membros da nobreza belga, donos da segunda maior cervejaria do mundo, a juntarem suas empresas e a deixarem seu comando na mão dos brasileiros. O acordo de acionistas desta fusão é conhecido no mercado financeiro pela sofisticação e peculiaridade – frutos da criatividade pragmática exercida também por banqueiros, advogados, advisors. Teve ainda a compra da Anheuser Busch, que deu origem à AB Inbev, e da SabMiller – histórias cheias de emoção e movimentos criativos.
O que há em comum entre essas e muitas outras empreitadas de sucesso são três elementos, que considero premissas para a criatividade pragmática:
1. Coragem para errar. Acertar grande pressupõe errar muito. Quanto mais disposto você está a aceitar as falhas e começar tudo de novo, mais possibilidades de chegar a um resultado tão criativo quanto relevante.
2. Disciplina. Aqui está a tal da estrutura, sobre a qual falei no início do texto. É preciso ter planos, parâmetros, limites, direção – e segui-los. Criar sem balizas pode acabar igual às minhas aulas de artes da infância. Um propósito, um ponto de partida, regras, métricas… tudo isso é muito bem-vindo para nortear a criatividade.
Ariane Abdallah é jornalista, autora do livro “De um gole só – a história da Ambev e a criação da maior cervejaria do mundo”, co-organizadora do “Fora da Curva 3 – unicórnios e start-ups de sucesso” e fundadora do Atelier de Conteúdo, empresa especializada na produção de livros, artigos e estudos de cultura organizacional. Praticante de ashtanga vinyasa yoga, considera o autoconhecimento a base do empreendedorismo.
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