Kelly Baptista, da Fundação 1Bi: "Queremos reduzir o apartheid tecnológico do Brasil"

20 de novembro de 2020
Divulgação

A líder do braço social do Grupo Movile: planos de treinar 1 milhão de pessoas em 2021 através do WhatsApp

Até seus 17 anos de idade, Kelly Baptista ainda não havia conhecido uma mulher negra que tivesse cursado o ensino superior. Foi este primeiro contato com uma jornalista formada que revelou um mundo de possibilidades para a ativista e especialista em políticas públicas, hoje líder da Fundação 1Bi.

O potencial da tecnologia para democratizar o acesso à educação foi justamente o que atraiu Kelly ao desafio de gerir o braço social do Grupo Movile, estabelecido em 2019. A instituição quer influenciar políticas públicas para gerar oportunidades com tecnologia, e educar 1 milhão de pessoas até o final de 2021, com investimento previsto de cerca de R$ 460 mil.

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Kelly traz consigo um histórico profissional de mais de uma década, que nos últimos anos tem enfatizado a transformação social através de abordagens inovadoras. Antes de se juntar à Fundação, era head de negócios de impacto no Instituto Plano de Menina, cujo foco é formação de meninas líderes. Antes disso, passou pela Gerando Falcões, onde gerenciou a área de formação e empregabilidade para jovens.

“Das mulheres de quase 40 anos com as quais convivo, sou uma exceção”, diz a executiva, lembrando da infância carente no extremo sul de São Paulo, em que a mãe vendia pão para que ela cursasse o ensino superior na Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec) – estudo que ela deu continuidade com diversos cursos de pós-graduação.

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“Meu objetivo é alcançar milhões de jovens Brasil afora, que tiveram um início de vida como o meu para que as próximas gerações não demorem tanto para conquistar as coisas”, ressalta, acrescentando que esta meta também engloba o treinamento de pessoas mais velhas, para que possam inserir-se na economia digital.

O objetivo de Kelly se traduz na expansão das atividades da Fundação como o Potencialize, programa de digitalização de entidades sem fins lucrativos que atualmente apoia mais de 75 organizações e envolve a atuação voluntária de funcionários da Movile, de todos os níveis de senioridade. Além disso, há o Aprendizap, aplicativo baseado no WhatsApp desenvolvido pela Wavy, empresa de mensageria da Movile em parceria com a Fundação Lemann, Fundação Estudar, Embaixadores da Educação e Descomplica, que gamifica conteúdo educacional para o ensino fundamental e médio.

Outra frente de atuação da Fundação 1Bi é o Jornada para o Futuro, iniciativa de ensino de programação para jovens de comunidades carentes. Antes da pandemia, o projeto era conduzido nas instalações das organizações sociais parceiras, e a Fundação entrava com a metodologia, conteúdo e com o lanche para os alunos. A oportunidade para os estudantes de estagiar em uma das empresas do Grupo Movile era uma novidade para este ano, que precisou ser estacionada por conta da Covid-19.

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Segundo Kelly, a ideia é usar as lições aprendidas com o Aprendizap nos últimos anos para digitalizar o Jornada para o Futuro, e a Fundação está em discussões com entidades como a Recode, organização social carioca que disponibiliza treinamento online para diversas carreiras de tecnologia.

“Nossa conversa tem sido sobre achar formas de ensinar tecnologia pelo celular, considerando que para programar você atualmente precisa de um computador, e que ainda é arriscado aglomerar crianças nas ONGs, sem saber o próximo passo da pandemia”, aponta.

O Aprendizap já alcançou mais de 140 mil usuários desde sua criação, em agosto de 2019. O número representa um crescimento exponencial na adesão da plataforma, que estava em 33 mil usuários no primeiro trimestre de 2020. Comentando sobre o objetivo de chegar a 1 milhão de usuários, Kelly diz ser uma meta ambiciosa, porém possível.

“A partir do momento que entendermos todas as nuances da plataforma, conseguirmos prototipar e testar isso – e o menino em [idade pré-escolar] conseguir ser alfabetizado através do nosso aplicativo e o grande conseguir programar – conseguiremos alavancar [o alcance] para 1 milhão de pessoas”, ressalta a executiva.

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Além disso, Kelly pretende usar sua expertise na criação de políticas publicas para reforçar a atuação da Fundação junto a organizações sociais com projetos focados no combate à exclusão digital, como a Central Única das Favelas (CUFA) bem como secretarias de estado.

“A pandemia escancarou o abismo tecnológico que o Brasil tem. Mesmo em São Paulo, vemos uma realidade muito diferente a 50 minutos da Avenida Paulista, com crianças tendo que ir a centros de educação unificada para ter acesso à tecnologia. Não vemos histórias como as de certos meninos de classe A, que com 10 anos de idade já estão programando”, diz a executiva.

Segundo Kelly, gestores públicos precisam ter uma agenda de inovação em seus planos de governo e a Fundação quer se envolver nesses debates. Essa agenda é importante para a organização não só por conta das possibilidades de educação e trabalho para a população periférica, mas para melhorar a provisão de serviços públicos.

“Se a tecnologia está disponível na periferia, é possível reduzir o número de filas de atendimento numa subprefeitura, num posto de saúde, mas precisa ter acesso a aplicativos, pontos de internet. No momento, nem as operadoras e nem o governo olham para isso”, argumenta.

Kelly também espera que outras startups se interessem por estabelecer esforços similares ao que a Movile faz com a Fundação 1Bi, principalmente no que diz respeito à atuação nas periferias: “Queremos ajudar a reduzir esse apartheid tecnológico que temos no país. A Fundação vai mudar muito a vida das pessoas, mas outras empresas também têm esse potencial de mudança.”

Quando o assunto é a presença de mulheres em cargos seniores de empresas, em particular no setor de tecnologia, Kelly analisa a própria trajetória e acontecimentos como a eleição presidencial dos Estados Unidos, e constata que, de maneira geral, a liderança negra feminina incomoda.

“Temos que provar o tempo todo que não estamos ali através de cotas, ou porque a empresa precisa cumprir sua meta de diversidade: não, nós estamos ali porque fomos tão boas quanto [pessoas não-negras] no processo seletivo. Mas a gente sabe que o racismo estrutural não permite – e não quer – a nossa cara preta”, diz.

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Este processo de enfrentamento muitas vezes é, segundo Kelly, complexo, exaustivo, e traz consigo uma grande responsabilidade, mas também carrega um grande poder de transformação. Em alusão à prática da Movile de incentivar funcionários a cultivarem sonhos, ela fala da importância de almejar realizá-los: “Um dos impactos de crescer na periferia e não ter representatividade é não sonhar. Por isso, sempre falo para as meninas e mulheres com quem realizo meu trabalho: sonhe”.

“Quando a [vice-presidente eleita dos Estados Unidos] Kamala Harris discursou depois das eleições, muitas postagens nas redes sociais mostravam meninas negras observando com admiração”, lembra a executiva. “O legado que quero deixar é esse: uma história bem escrita, para que meninas possam se inspirar.”

Angelica Mari é jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.

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