ESPECIAL INOVADORES NEGROS: 20 creators que têm muito a dizer
Angelica Mari e Gabriela Arbexinsider@forbes.com.br
4 de setembro de 2020
Divulgação
KondZilla: 60 milhões de inscritos no YouTube
Eles criam conteúdo sobre os mais variados temas: beleza, feminismo, música, finanças, cultura, meditação, lifestyle, comportamento. Mas creators e influencers negros só são chamados para participar de eventos e campanhas que tratam de racialidade e temas correlatos. Essa foi uma das constatações de “Um Retrato sobre Creators Pretos no Brasil”, a primeira pesquisa brasileira do mercado de influência com recorte racial
Conduzido pela YouPix, plataforma digital criada há 14 anos para discutir a cultura da internet, Sharp, Squid, site “Mundo Negro” e Black Influence, o levantamento revelou, por exemplo, que embora a categoria “casa e construção” apareça no 3º lugar do ranking de assuntos mais explorados pelos influenciadores negros, ela é responsável pelo menor número de contratações. Em compensação, “impacto social”, que está na 11ª posição, aparece em 2º lugar na lista de temas mais buscados.
LEIA MAIS: Especial Inovadores Negros: 12 profissionais que estão levando a educação a outro nível no Brasil
“A pesquisa confirmou algumas coisas das quais já suspeitávamos”, conta Bia Granja, uma das fundadoras da YouPix e especialista em influência digital. Ela relata que a situação já foi pior, e que nos últimos quatro anos o tema vem sendo endereçado com mais força – embora a realidade ainda esteja muito longe do ideal. Para se ter uma ideia da disparidade, dos 760 criadores que participaram da pesquisa em todo o Brasil, 57% são brancos, 22% são pardos, 17% são negros, 3% são amarelos e 1% é indígena.
A especialista lembra que, no início do marketing de influência, em meados dos anos 2000, os personagens negros sequer eram cogitados para trabalhos com as marcas. Depois, numa segunda onda – essa que estamos vivendo agora –, eles passaram a ser lembrados quando os temas tinham relação com o ativismo. Bia defende uma entrada imediata na terceira fase. “Eles precisam ser chamados para falar sobre aquilo no qual tem autoridade pra falar e não apenas sobre pretitude. E essa diversidade de estilos tem que estar expressa nos temas abordados.”
Outro fator que comprova esse gap é a diferença de remuneração. Ao comparar a média dos valores mínimos e máximos que os creators receberam em campanhas, existe uma grande disparidade entre as quantias desembolsadas. A média do valor máximo recebido por um creator negro é de R$ 1.626,83, enquanto a recebida por um influenciador branco é de R$ 4.181,01. A diferença é de mais de 50% inferior à média da pesquisa. Quando perguntados se já receberam menos em alguma campanha, mesmo tendo a mesma faixa de seguidores e engajamento semelhante com outro influenciador recrutado, 38% dos influenciadores negros responderam que sim. “O dinheiro tem o poder de sustentar estruturas racistas ou não. Precisamos falar sobre isso: onde ele circula e como. Não é só dar visibilidade a esses profissionais em novembro, no mês da consciência negra.”
Apesar de vivermos num país onde a maior parte da população é negra – 56% –, Bia atribuiu ao racismo estrutural o fato de a primeira pessoa cogitada para qualquer campanha ser branca. “Estamos num momento de responsabilidade e responsabilização. Se as empresas não entenderem que têm responsabilidade na desconstrução dessas estruturas, elas serão responsabilizadas. Se não quiserem fazer por altruísmo, que façam pelo negócio. Caso contrário, elas serão canceladas. Além disso, as pesquisas já provaram que grupos diversos internamente aumentam a lucratividade das empresas, afinal, compramos daqueles que nos representam”, diz. Em resumo, é uma questão de sobrevivência.
O PAPEL DAS PLATAFORMAS
O processo de desconstrução de estruturas tradicionalmente racistas descrito por Bia Granja, bem como a mudança no atual ecossistema de produtores de conteúdo online no Brasil passa por uma revisão no posicionamento das empresas que controlam os ambientes onde creators e influencers surgem e se desenvolvem.
As maiores plataformas de vídeos e podcasts são gratuitas e oferecem, em teoria, a possibilidade de criação e publicação de conteúdo por qualquer pessoa. A realidade, no entanto, é outra: os canais de maior audiência no Brasil são majoritariamente comandados por pessoas brancas – o KondZilla, de Konrad Dantas, faz parte do rol de notáveis exceções, tendo alcançado 60 milhões de inscritos no YouTube nesta semana – ou são fruto de parcerias entre as plataformas e grandes grupos de mídia.
“Havia um mito, de que a internet traria um poder de comunicação diferente das mídias tradicionais para as pessoas, mas o que vemos é que quem tem mais estrutura para ter uma gravação com mais qualidade técnica, mais conhecimento sobre produção de entretenimento e roteiro, se dá melhor – então quem se apropria primeiro deste espaço são as pessoas brancas”, diz Ale Santos, professor de entretenimento fantástico da ESPM, autor e podcaster no “Infiltrados no Cast”, um nome que faz alusão ao filme “Infiltrados na Klan”, de Spike Lee, e reforça o fato de que se trata de um programa comandado por um negro, infiltrado em um contexto predominantemente branco.
A falta de diversidade na comunidade de creators de um país onde a maioria da população é negra precisa ser questionada, segundo Santos, pois existem muitas questões que podem ser abordadas a partir da perspectiva da negritude. Além disso, o especialista aponta outros problemas associados a esta falta de representatividade:
“O fato de que existem poucos negros nesta realidade pode significar que os negros não estão consumindo o conteúdo – o que não sabemos, pois as plataformas não divulgam os números – e que existe uma dificuldade estrutural no país que impede que os negros produzam conteúdo”, ressalta, referindo-se a desafios que incluem a tecnologia, mas também englobam aspectos como condições de se dedicar à criação.
Segundo Santos, parte das plataformas já reconhece o problema causado pela discriminação algorítmica, que reproduz a desigualdade vista na sociedade, e buscando formas de reverter a situação: “Além de dar reconhecimento e apoio com estrutura para potencializar essas vozes, algumas empresas estão questionando as regras que utilizam para colocar conteúdos em destaque”, aponta o podcaster.
MUDANÇAS EM CURSO
A plataforma de streaming de áudio Spotify tem dado passos concretos para estimular a emergência e crescimento de creators negros no Brasil e endereçar alguns problemas estruturais. A empresa anunciou nesta semana o SoundUp, programa de aceleração de aspirantes a podcasters de origens sub-representadas por meio de treinamento, workshops e suporte. Através do programa, participantes receberão um gravador, computador, fones de ouvido e acesso à internet.
Segundo Javier Piñol, diretor do Spotify Studios para a América Latina, o programa é uma das ações da plataforma para tornar a indústria de áudio mais inclusiva e igualitária: “O que nós queremos com esse programa é criar um espaço para novos talentos, vozes, histórias e perspectivas em podcasting”, aponta. O Spotify também planeja lançar em breve no Brasil as funcionalidades da Anchor, empresa que adquiriu em 2019 e simplifica a publicação, distribuição e monetização de programas de áudio.
Além da iniciativa de aceleração, a empresa ampliou a programação com vozes negras para seus os 300 milhões de usuários do Spotify durante o Black Out Tuesday e, ao longo de 24 horas, gerou um aumento de 30 vezes no número de visitantes no hub dedicado ao movimento.
“Esses são problemas difíceis de resolver e, embora não haja respostas fáceis ou soluções rápidas, o Spotify é solidário com a comunidade negra e se dedica a promover mudanças sociais duradouras”, diz Piñol.
O YouTube também tem se movimentado para responder à necessidade de maior diversidade entre seus creators de sucesso. Segundo a head de desenvolvimento de parcerias de conteúdo da plataforma para a América Latina, Bibiana Leite, a abertura e capilaridade do YouTube permitem que a comunidade negra expresse a sua identidade, e ao mesmo tempo ajuda outras pessoas a aprenderem sobre racismo e injustiça social a partir do ponto de vista de quem sente estas experiências na pele.
“O YouTube ajuda a criar uma rede de apoio e educação que transcende os limites da comunidade negra”, aponta Bibiana, que atualmente é baseada na Califórnia, e foi a primeira mulher negra contratada pelo Google no Brasil, em 2006.
Iniciativas recentes anunciadas pelo YouTube para ampliar e desenvolver artistas e criadores de conteúdo incluem um fundo global plurianual de US$ 100 milhões. Segundo Bibiana, a empresa vai anunciar, em breve, planos de como parte desta verba vai ser utilizada no Brasil.
Em outras ações recentes para estimular o desenvolvimento de produtores de conteúdo, a empresa realizou aulões para criadores e o YouTube Social Impact Lab, iniciativa para ajudar organizações sem fins lucrativos a aprenderem estratégias do YouTube, onde o Instituto de Mulheres Negras Geledés foi um dos participantes.
“Sabemos que há mais trabalho a fazer, e por isso continuamos a examinar como nossas políticas e produtos estão funcionando para todos, inclusive para a comunidade negra, e buscamos encontrar possíveis brechas”, diz Bibiana, ressaltando que a plataforma também busca garantir que usuários, artistas e criadores de conteúdo negros possam compartilhar suas histórias e estar protegidos de conteúdo de ódio e de intimidação.
Para Ale Santos, reconhecer os creators pretos que já estão em atividade também é importante, pois estas pessoas agem como pontes com outras que atualmente não são ouvidas. Isso amplia as possibilidades de inclusão, diálogo e produção coletiva de inteligência.
“Estamos num país onde há um grupo de pessoas silenciadas, que não participam de discussões importantes na internet, e são muito impactadas pela TV aberta. Através de criadores periféricos ou do interior, como eu, você passa a se conectar com estas pessoas e elas passam também a se identificar com o conteúdo e entrar nas plataformas”, aponta.
Além disso, Santos destaca a oportunidade comercial e lembra que, apesar de estas plataformas de conteúdo serem enormes, ainda tem muito potencial de crescimento: “O Twitter, por exemplo, tem um pouco mais de 40 milhões de usuários em um país de 210 milhões de pessoas, então estamos falando de um cenário de exclusão considerável. Quando creators negros chegam e produzem, também trazem audiência para as plataformas”, ressalta
Segundo o podcaster, aumentar o número de criadores e influencers negros também contribui para endereçar um grande desafio, que é o ponto de partida para os que ainda não estão neste universo: “Ao mesmo tempo que temos o problema de sermos poucos na produção de conteúdo, isso também cria o que chamamos de oceano azul: existem muitas oportunidades para qualquer criador negro se estabelecer e ganhar relevância. Não apenas vale a pena começar, como é necessário começar.”
Veja, na galeria de fotos a seguir, 20 creators negros que falam de negritude e racismo, mas têm muito mais do que isso a dizer: