FRANCISCO BRENNAND: O UNIVERSO PARALELO DA OFICINA DE CERÂMICA
A primeira reação ao ingressar na Oficina de Cerâmica de Francisco Brennand, no bairro da Várzea, em Recife, é ficar mudo. Como em um sonho inédito, os olhos ficam em dúvida sobre o que focar em um mar de 3 mil obras entre esculturas, pinturas e desenhos espalhados em 15 mil metros quadrados – não há lugar semelhante no mundo. Os pés não sabem que caminho seguir e, quando menos se espera, a sensação é de se levitar em um passeio que costura espaços quase mágicos, como o Templo Central, o Salão de Esculturas, a Accademia, o Estádio e a Capela Imaculada Conceição. Figuras fantásticas e mitológicas refletem o âmago do artista Francisco Brennand (1927-2019), que se definia como alguém feudal, supersticioso e pornográfico. É uma viagem.
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A Cerâmica São João Fábrica de Telhas e Tijolos Refratários nasceu em 1917, fundada por Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, pai de Francisco. O lugar encerrou as atividades em 1945 – e ressuscitou em 1971, já sob os moldes do artista, que instalou ali seu universo paralelo. Este ano, após fechar por causa da pandemia, reabriu as portas ao público em setembro.
Francisco começou a trabalhar na Cerâmica São João em 1942, onde teve contato com o escultor Abelardo da Hora. No ano seguinte, conheceu Deborah de Moura Vasconcelos no Colégio Oswaldo Cruz, onde ficou amigo de Ariano Suassuna (1927-2014) e fazia as ilustrações dos poemas dele para o jornal literário do colégio. Francisco teve duas filhas com Deborah – e, ao longo da vida, mais três filhos com três mulheres.
Em 1947, ganha o primeiro prêmio de pintura no Salão de Arte do Museu do Estado de Pernambuco. Incentivado por Cícero Dias
(1907-2003), parte em 1949 para a França, onde estuda pintura com Fernand Léger (1881-1955) e André Lothe (1885-1962). Inicialmente achava a cerâmica um tipo de arte menor, decorativa – até admirar as cerâmicas de Picasso (1881-1973). Encanta-se com a arte de Gaudí em Barcelona no início dos anos 1950. De volta ao Recife, faz o mural cerâmico do Aeroporto Internacional de Guararapes em 1958. No ano seguinte, marca presença na V Bienal de São Paulo. Ao transformar a antiga cerâmica do pai em um museu-ateliê, Francisco chama Burle Marx para cuidar dos jardins. Nas décadas seguintes, sua obra se esparrama pelo Brasil (está em 13 capitais) e pelo mundo (Estados Unidos, Inglaterra, Suíça, França, Portugal, Chile e Peru).
O início dos anos 2000 marca a entrada da sobrinha-neta na vida de Francisco. Mariana Brennand Fortes é fundamental para organizar duas obras que perpetuam o legado do artista. O filme Francisco Brennand levou dois dos principais prêmios da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2012: Abraccine (Melhor filme brasileiro na competição Novos Diretores) e Itamaraty (Melhor longa metragem – documentário); e o livro Diário de Francisco Brennand: o nome do livro e o nome do outro, laureado com o 3º lugar (categoria Capa) no prêmio Jabuti, de 2017. São 2 mil páginas em quatro volumes, reunidos em uma caixa, que trazem os escritos do artista de 1949 a 2013.
“O principal legado de Francisco Brennand para a arte brasileira é a sua produção cerâmica e pictórica que dialogava com temas como a universalidade, a natureza, a brasilidade, a eternidade e origem da vida, bem como a servidão e a condição humana, além de temas mitológicos, da flora e fauna”, detalha Mariana. “Sua contribuição deve ser pensada além do campo da arte, atravessando questões humanas e filosóficas que estão presentes não apenas na sua produção como também em seus escritos e em seu pensamento.” Entre as obras que a sobrinha-neta mais admira, estão a série Les Amants, inspirada na obra O Beijo, de Brancusi; O Ovo da Serpente (“obra seminal que amplia o caráter simbólico do ovo para tratar de temas universais como a origem do mundo, reprodução e eternidade”), e a série Pássaro Rocca (“presente na coleção de diversos museus no Brasil e no exterior”).
Já na visão do antropólogo e escritor Bruno Albertim, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, Brennand “foi – e é – um dos grandes narradores visuais do Brasil, autor de uma mítica própria e poderosa em que arquétipos ocidentais fundantes se banham com as cores da terra”.
Bruno puxa da memória a última conversa que teve com Francisco, um pouco antes de morrer, na Oficina de Cerâmica. “Brennand comentou: ‘Cícero Dias dizia: Vocês querem a definição da minha pintura? Vejam a luz do Recife. Nós temos no Recife a mais bela luz do mundo. Única, só comparável à luz de Taormina, na Sicília, que tem essa luz diamantina sem nenhuma turvação. Aqui, ela está no limite do perfeito. Minha obrigação é repetir que aqui há a mais bela luz do mundo.”
Ao recordar essa conversa, Bruno lembra que Francisco costumava dizer: “O futuro tem um coração antigo”. “Penso que suas palavras servem perfeitamente como parábola para analisar sua obra e seu legado. Tendo conhecido Léger e Picasso, ele poderia ter se radicado como artista na Europa, mas escolheu ser um artista do e no Recife. Com sua linguagem, ele confirma que já não se pode acreditar que houve um único modernismo no Brasil, centrado apenas no evento da semana paulistana de 1922. Houve – e há – outros modernismos no Brasil: o de Pernambucano é um dos mais contundentes, de uma insolação e padrão pictórico mais saturado, com a temperatura e as questões identitárias da terra.”
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Questionada sobre o que em Francisco mais a faz sentir saudade, a sobrinha-neta Mariana diz: “Encontrá-lo em seu ateliê, dentro da Oficina, e acompanhar seu processo criativo, construindo seu próprio universo.”
Quando conversei com Francisco em 2002, me chamaram a atenção duas respostas. A primeira, ao perguntar se ele costumava sonhar: “Sonho muito. Sonho tanto que às vezes não concebo se estou sonhando ou se simplesmente estou pensando acordado – minha mente é conturbada”. A segunda, ao indagar se ele tinha medo da morte: “A morte não me aterroriza, nem me incomoda. Afinal, perde-se muito pouco. O passado já aconteceu, e o futuro não existe. Ela só leva o presente.”
RICARDO BRENNAND: CASTELO GÓTICO, PINTORES HOLANDESES E ARMAS BRANCAS
Os primos de Francisco e Ricardo Brennand nasceram com 15 dias de diferença. E, 92 anos depois, morreram com quatro meses de intervalo. Ricardo, o mais velho, faleceu de Covid-19 em 25 de abril último, poucas semanas após o Instituto Ricardo Brennand ser fechado por causa da pandemia. Tal instituto é localizado no mesmo bairro da Várzea, onde fica a Oficina de Francisco, mas está do outro lado do Rio Capibaribe. Trata-se de um castelo gótico (sim, um castelo!) que, embora já tenha ganhado duas vezes (2015 e 2017) o prêmio de Melhor Museu do Brasil e da América do Sul, concedido pelo TripAdvisor (desbancando a Pinacoteca de São Paulo e Inhotim, em Minas Gerais), ainda é pouco conhecido de muitos brasileiros.
Além de ser muito impactante por fora, o IRB conserva um acervo de mais de 10 mil obras, com destaque para a coleção de armas brancas, armaduras e canhões (4 mil itens), sem contar a biblioteca, com 50 mil títulos. A coleção de Ricardo que culminou nessa impressionante reunião de peças que vão do século 2 a telas de artistas contemporâneos começou com um presente recebido aos 12 anos de idade, dado pelo pai de Francisco, também chamado Ricardo: um canivete – o nome do instituto é uma homenagem ao tio.
Diferentemente da história do primo Francisco, um artista de renome internacional, Ricardo pautou seus 50 primeiros anos da vida adulta pela atividade empresarial, após se formar nos cursos de engenharia civil e mecânica na Universidade Federal de Pernambuco, no fim da década de 1940, mesma época em que se casou com Graça Maria Monteiro, mãe de seus oito filhos (que se desdobraram em 19 netos e 43 bisnetos). Empreendeu nos ramos de cimento, aço, porcelana e açúcar, inaugurando diversas fábricas. O sucesso no mundo dos negócios o colocou na lista de bilionários da Forbes: no ano passado, entre os 206 nomes, figurou na 105ª posição, com patrimônio de R$ 3,10 bilhões.
O MOMENTO MAIS DIFÍCIL
Um baque violento na vida de Ricardo mudou o foco de suas prioridades: a morte do filho Antonio, de câncer, em 5 agosto de 1998. “Era um filho muito querido, uma espécie de sucessor, então, ele perde o encanto pelos negócios e canaliza uma atenção maior para o lado artístico e sentimental que tinha, mais ligado ao colecionismo”, explica Hugo Coelho Vieira, historiador do IRB. No ano seguinte, ele vende fábricas de cimento, operação que gera recursos para investir na construção do museu, inaugurado em setembro de 2002. A decisão de se dedicar à obra vem na virada do século, quando toma conhecimento de que uma grande exposição do holandês Albert Eckhout (1610-1665) viria ao Brasil, mas seria restrita ao eixo Rio-São Paulo-Brasília, uma vez que o Nordeste não tinha um lugar adequado para receber a mostra.
Parêntese histórico: Eckhout passou sete anos no Brasil (1637-1644), parte dos 24 anos que os holandeses deram as cartas por aqui, quando foram senhores de sete das 19 capitanias que fatiaram o país no século 17. O epicentro desse poder foi Recife, dominado pelo conde Johann Mauritius van Nassau, o popular Maurício de Nassau. Foi ele quem trouxe os pintores Frans Post e Eckhout, responsáveis pelo “primeiro grande registro iconográfico da paisagem, das plantas, dos animais e dos indígenas no Brasil”, como escreve Eduardo Bueno no livro Brasil: uma história. “Eckhout foi um pintor naturalista com excepcional domínio do desenho de modelos vivos, dono de um estilo altamente individual e detalhista de tipos humanos que europeus jamais haviam retratado”. Fecha parêntese.
“Quando Ricardo ficou sabendo que a mostra de Eckhout não viria ao Recife, ele ficou muito desgostoso, achou um absurdo”, conta Hugo. “E, como disseram que precisava de um museu de ponta, ele imediatamente se prontificou a construir um. E assim o fez: em menos de dois anos a pinacoteca estava pronta.” Nem precisa dizer que a exposição Retratos do Novo Mundo: o legado de Albert Eckhout, com 24 quadros (óleo sobre lona) do Departamento de Etnografia do Museu Nacional da Dinamarca, foi um tremendo sucesso em Recife.
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Hugo diz que dois anos depois, em 2004, ficaria pronta a parte conhecida como o Castelo. “É no Museu de Armas Castelo São João que está o que Ricardo colecionou a vida inteira. Peças que ele foi comprando em leilão, feira de antiguidades, antiquários. A coleção de armas brancas é a parte mais famosa, mas tem também esculturas de mármore, pinturas, armaduras.” Nara Galvão, coordenadora geral do IRB, com mestrado sobre o colecionismo de Ricardo Brennand, lembra como o acervo do empreendedor foi crescendo, mesmo quando não imaginava ter um museu e ia guardando as coisas em casa. “Quando ele viajava a negócios, atrás de maquinários para indústrias, sempre trazia algum objeto, e o critério era simples: ele tinha que gostar, achar bonito.” Hugo completa que nem sempre eram itens que cabiam na bagagem de mão. “Ele chegava das viagens e eu perguntava: ‘Comprou alguma coisinha, dr. Ricardo?’ E ele respondia: ‘Sim, daqui a pouco estão chegando uns contêineres!’”
Nara sublinha que o colecionismo de Ricardo nunca foi pautado pelo investimento. “O que interessava a ele, além da parte estética, era o afeto e a relação com as pessoas envolvidas no processo de aquisição e depois com os visitantes do museu. Desde o ano passado, frequentava o Instituto de cadeira de rodas, ficava às vezes na porta, recepcionando as pessoas. Falava outros idiomas quando eram turistas estrangeiros. Ele foi um visionário. O que queria mesmo era socializar e compartilhar a história de Pernambuco, sobretudo para o público jovem e carente do Nordeste. Os olhos dele brilhavam quando via crianças de escolas públicas: dar acesso ao conteúdo que os estudantes tinham visto nos livros de história. Era isso que dava significado para o espaço.” Tal desejo fez com que reunisse no IRB a maior coleção do mundo do pintor Frans Post, com 20 quadros.
Outro parêntese histórico (mais curtinho): Frans Post (1608-1669) é o primeiro pintor da paisagem brasileira – e da Américas. Ficou fascinado pela luminosidade do Novo Mundo. Pintou apenas 18 quadros com base na observação direta da natureza – as duas centenas de obras que pintou sobre o tema foram baseadas no que imaginava. Pronto, fecha parêntese.
“Quantos empresários do tamanho de dr. Ricardo criaram um museu para o Brasil?”, pergunta Hugo. “Isso é o que fica. Colocar tal patrimônio à disposição da sociedade. Esse é o grande legado de Ricardo Brennand.”
Reportagem publicada na edição 81, lançada em outubro de 2020
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