O herói esquecido da Covid: a história do cientista cuja descoberta viabilizou as vacinas

25 de agosto de 2021
Jens Kristian Balle

Sem o inovador sistema de entrega de Ian MacLachlan, empresas como a Moderna e a Pfizer não conseguiriam introduzir as vacinas de mRNA com segurança nas suas células.

Em meados de 2020, enquanto a pandemia se alastrava, infectando mais de 200 mil pessoas por dia em todo o mundo, o CEO da Pfizer, Albert Bourla, e o CEO da BioNTech, Uğur Şahin, embarcaram em um jato executivo a caminho do interior montanhoso de Klosterneuburg, na Áustria. O destino deles era uma pequena fábrica situada na margem oeste do rio Danúbio, chamada Polymun Scientific Immunbiologische Forschung. Bourla e Şahin tinham a missão de fazer com que a empresa fabricasse o máximo possível de nanopartículas lipídicas para sua nova vacina contra a Covid-19, cuja autorização de emergência estava em tramitação preferencial na Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos.

A vacina Pfizer-BioNTech tinha sido criada com uma tecnologia de RNA mensageiro (mRNA) que instrui o sistema imunológico do corpo sobre como combater o coronavírus. No entanto, para introduzi-la com segurança nas células humanas, o mRNA precisava ser envolvido em fragmentos microscópicos de gordura conhecidos como lipídios. A fábrica austríaca era um dos poucos lugares do planeta que produzia as nanopartículas lipídicas necessárias, e Bourla fez questão de que Şahin fosse com ele pessoalmente para defender a causa deles.

LEIA MAIS: Acompanhe em primeira mão o conteúdo do Forbes Money no Telegram

“A plataforma de mRNA não se resume a criar uma molécula de mRNA; essa é a parte fácil”, diz Bourla. “A questão é ter certeza de que a molécula de mRNA entrará nas suas células e dará as instruções.”

Porém, a história de como a Moderna, a BioNTech e a Pfizer conseguiram criar esse sistema de entrega essencial nunca foi contada. É uma saga complicada que envolve 15 anos de batalhas jurídicas e acusações de traição e engano. O que está claro é que, quando a humanidade precisou de uma maneira de entregar mRNA às células humanas para deter a pandemia, havia apenas um método confiável disponível – e não era um método concebido internamente na Pfizer, na Moderna, na BioNTech ou em qualquer outra empresa de vacinas importante.

Uma investigação feita pela Forbes ao longo de meses revela que o principal cientista responsável por esse método de entrega crucial é um bioquímico canadense pouco conhecido: Ian MacLachlan, de 57 anos. Como diretor científico de duas pequenas empresas, a Protiva Biotherapeutics e a Tekmira Pharmaceuticals, MacLachlan liderou a equipe que desenvolveu essa tecnologia fundamental. Hoje, contudo, poucas pessoas – e nenhuma das grandes companhias farmacêuticas – reconhecem abertamente seu trabalho revolucionário, e MacLachlan não ganha nada com a tecnologia da qual foi pioneiro.

“Eu simplesmente não queria passar o resto da minha vida lidando com isso, mas não tenho como escapar”, diz MacLachlan. “Abro meu navegador de manhã e olho as notícias, e 50% delas são sobre vacinas. Elas estão em toda parte, e não tenho dúvidas de que as vacinas estão usando a tecnologia que nós desenvolvemos.”

A Moderna Therapeutics contesta com veemência a ideia de que sua vacina de mRNA usa o sistema de entrega de MacLachlan, e a BioNTech, fabricante de vacinas parceira da Pfizer, aborda o assunto com cautela. Há processos judiciais em andamento e muito dinheiro em jogo.

A Moderna, a BioNTech e a Pfizer estão a caminho de vender US$ 45 bilhões em vacinas em 2021. Elas não pagam um centavo a MacLachlan. Outros fabricantes de vacinas contra o coronavírus, como a Gritstone Oncology, obtiveram recentemente licença para usar a tecnologia de entrega Protiva-Tekmira de MacLachlan pagando entre 5% e 15% das vendas do produto. MacLachlan não tem mais participação financeira na tecnologia, mas royalties semelhantes sobre as vacinas da Moderna e da Pfizer-BioNTech poderiam render até US$ 6,75 bilhões apenas em 2021. Em uma irônica reviravolta do destino, entretanto, a proposta do presidente Joe Biden de quebrar patentes de vacinas contra a Covid-19 tornaria improvável que a propriedade intelectual relacionada aos avanços de MacLachlan pudesse ser uma fonte de riqueza.

Apesar das negativas, artigos científicos e documentos regulatórios apresentados à FDA mostram que tanto as vacinas da Moderna como as da Pfizer-BioNTech usam um sistema de entrega muito semelhante ao que MacLachlan e sua equipe criaram: um componente de quatro lipídios cuidadosamente formulado que encapsula mRNA em uma partícula densa por meio de um processo de mistura que envolve etanol e um conector em T.

Durante anos, a Moderna afirmou que estava usando seu sistema de entrega exclusivo, mas, quando chegou a hora de a empresa testar sua vacina contra a Covid-19 em camundongos, ela usou os mesmos quatro tipos de lipídios da tecnologia de MacLachlan, e em proporções idênticas.

A Moderna insiste que a formulação pré-clínica da vacina não era a mesma que a da vacina em si. Registros regulamentares subsequentes feitos pela Moderna mostram que sua vacina usa os mesmos quatro tipos de lipídios do sistema de entrega de MacLachlan, mas com uma versão exclusiva de um dos lipídios e as proporções “ligeiramente modificadas” de uma maneira ainda não divulgada.

A história é semelhante com relação à Pfizer e à BioNTech. Documentos da FDA mostram que a vacina delas usa os mesmos quatro tipos de lipídios em proporções quase exatamente iguais às que MacLachlan e sua equipe patentearam anos atrás, apesar de um desses lipídios ser uma nova variação exclusiva.

Nem todo mundo ignora MacLachlan. “O Ian MacLachlan ficou com muito do mérito da LNP [nanopartícula lipídica]”, diz Katalin Karikó, a cientista que lançou as bases dos tratamentos com mRNA antes de ingressar na BioNTech, em 2013. Mas Karikó, hoje cotada para um Prêmio Nobel, ficou chateada porque MacLachlan não a ajudou a usar seu sistema de entrega para desenvolver a empresa de mRNA dela anos atrás. “[MacLachlan] poder ser um grande cientista, mas não teve visão”, diz ela.

Sete anos atrás, MacLachlan deixou seu cargo na Tekmira, afastando-se de sua descoberta brilhante e de possíveis recompensas financeiras. Complicadas batalhas judiciais e disputas políticas internas no setor biofarmacêutico pelo sistema de distribuição o desgastaram. As emoções dele são complexas. Ele pode estar sendo desmerecido, mas sabe que ajudou a salvar o mundo.

“Existe uma equipe de pessoas que dedicaram grande parte da sua vida ao desenvolvimento desta tecnologia. Elas se doaram de coração e alma”, diz MacLachlan. “Essas pessoas trabalharam duro e deram o melhor de si para desenvolvê-la.”

Situado no alto de um morro, o Castelo de Hohentübingen domina a cidade de Tübingen, na Alemanha. Em outubro de 2013, MacLachlan, na época diretor científico da Tekmira Pharmaceuticals, subiu o morro até o castelo para participar de um coquetel no primeiro Congresso Internacional de Saúde de mRNA. Naquela noite, ele puxou papo com Stéphane Bancel, CEO de uma empresa de mRNA em ascensão chamada Moderna Therapeutics. MacLachlan sugeriu que a Tekmira e a Moderna trabalhassem juntas usando seu inovador sistema de entrega de medicamentos. “Vocês são muito caros”, Bancel respondeu.

A conversa causou uma sensação ruim em MacLachlan. Idem com relação à presença de um ex-colega, Thomas Madden, que havia sido despedido pela Tekmira cinco anos antes. A essa altura, MacLachlan já havia passado mais de uma década trabalhando em seu sistema de entrega, mas pessoas como Bancel pareciam mais interessadas em trabalhar com o londrino Madden.

A rivalidade entre esses dois cientistas está na raiz da controvérsia sobre a tecnologia de entrega da qual as vacinas atuais contra a Covid-19 dependem. MacLachlan e Madden se conheceram há 25 anos, quando trabalharam juntos em uma pequena empresa de biotecnologia com sede em Vancouver chamada Inex Pharmaceuticals. Com um doutorado em bioquímica, MacLachlan ingressou na Inex em 1996; foi seu primeiro emprego após concluir o pós-doutorado em um laboratório de genética da Universidade de Michigan.

A Inex teve como cofundador o diretor científico do laboratório, Pieter Cullis, hoje com 75 anos, um físico cabeludo que lecionava na Universidade da Colúmbia Britânica. Em sua posição privilegiada, Cullis abriu várias empresas de biotecnologia, cultivando uma comunidade de elite de cientistas que transformou Vancouver em um polo de química de lipídios.

Rebecca Miller/Forbes

Bioquímica revolucionária: a pesquisa de Katalin Karikó foi crucial para o desenvolvimento das vacinas de mRNA. Em outubro, ela pode se tornar a 58ª mulher a conquistar um Prêmio Nobel.

A Inex tinha uma molécula pequena candidata a medicamento para quimioterapia, mas Cullis também estava interessado em terapia genética. Seu objetivo era entregar material genético formado por moléculas grandes, como DNA ou RNA, dentro de uma bolha lipídica para que pudesse ser transportado com segurança como medicamento para dentro de uma célula – algo com que os bioquímicos sonhavam havia décadas, mas não tinham conseguido realizar.

Usando um método novo que misturava detergente com líquido, Cullis e sua equipe na Inex conseguiram encapsular pequenos pedaços de DNA em bolhas microscópicas denominadas lipossomas. Infelizmente, o sistema não era capaz de distribuir moléculas maiores, do tipo necessário para terapia genética, de maneiras úteis do ponto de vista médico. Eles tentaram outras abordagens, inclusive usando etanol, mas sem sucesso.

“Montamos todas as peças de LNP [nanopartícula lipídica] na Inex, mas não conseguimos fazer aquilo funcionar” para material genético, explica Cullis.

A Inex era uma empresa, não um laboratório de pesquisa, então mudou sua ênfase para o medicamento quimioterápico, mais promissor. O grupo de terapia genética foi dissolvido, em grande medida. MacLachlan administrou o que restou até que, em 2000, também decidiu sair. Em vez de deixá-lo ir embora por completo, Cullis persuadiu MacLachlan a pegar os ativos de entrega da empresa e transformá-los em uma nova empresa. Nascia, assim, a Protiva Biotherapeutics, da qual MacLachlan passou a ser o diretor científico e na qual a Inex manteve uma participação minoritária. Para o cargo de CEO, MacLachlan contratou Mark Murray, hoje com 73 anos, um antigo executivo norte-americano de biotecnologia com doutorado em bioquímica.

Não demorou muito para que dois químicos da Protiva, Lorne Palmer e Lloyd Jeffs, fizessem uma descoberta crucial que levou a um novo método de mistura. Eles inseriram lipídios dissolvidos em etanol de um lado de um conector em T e, do lado oposto, material genético dissolvido em água salgada; depois, lançaram jatos das duas soluções um contra o outro. Foi o momento pelo qual vinham esperando. A colisão fez os lipídios formarem uma nanopartícula densa que encapsulou instantaneamente o material genético. O método era elegantemente simples e funcionava.
“Os vários métodos usados anteriormente eram altamente variáveis e ineficazes”, diz MacLachlan. “Completamente inadequados para fabricação.”

LEIA MAIS: Agência dos EUA dá aprovação total à vacina Pfizer-BioNTech contra Covid-19

A equipe liderada por ele desenvolveu rapidamente uma nova nanopartícula lipídica feita de quatro tipos específicos de lipídios. Embora estes estivessem entre os lipídios que a Inex também vinha usando em seus experimentos, a LNP de MacLachlan tinha um núcleo denso que diferia significativamente das bolhas de lipossomas em forma de bolsa desenvolvidas pela Inex. A equipe de MacLachlan havia descoberto as proporções específicas dos quatro tipos de lipídios que funcionavam umas em relação às outras. Tudo foi devidamente patenteado.

As vacinas da Moderna e da Pfizer contra a Covid usam um tipo de terapia genética baseada na molécula de RNA mensageiro. Os cientistas da Protiva, no entanto, direcionaram-se inicialmente a um tipo diferente de terapia genética que usava RNA interferente, ou RNAi. Enquanto o mRNA instrui o corpo a criar proteínas terapêuticas, o RNAi visa a silenciar os genes ruins antes que causem doenças. Com o sistema de entrega de MacLachlan em mãos, a Protiva passou a colaborar com a Alnylam, uma empresa de biotecnologia sediada em Cambridge, Massachusetts, para viabilizar a terapia de RNAi.

Enquanto isso, a Inex, antiga empresa de MacLachlan, estava implodindo depois de o FDA ter negado a aprovação acelerada de seu medicamento quimioterápico. A Inex demitiu a maior parte de seus funcionários e então – apesar de ter criado a Protiva havia poucos anos – retomou a entrega de medicamentos. Ela também começou a trabalhar em parceria com a Alnylam. Em 2005, Cullis saiu, deixando ninguém menos que o arquirrival de MacLachlan, Thomas Madden, para comandar as iniciativas de entrega da Inex.

Em 2006, a Protiva e a Alnylam publicaram um estudo histórico na Nature demonstrando o primeiro silenciamento eficaz de gene em macacos. O estudo usou o sistema de entrega desenvolvido pela equipe de MacLachlan.

A Alnylam desenvolveu o Onpattro, um medicamento de RNAi usado para tratar danos neurais em adultos portadores de certa doença hereditária. Ele se tornaria o primeiro medicamento RNAi a ser aprovado pela FDA. Registros regulamentares mostram que a Alnylam usou o sistema de entrega de MacLachlan no Onpattro – com uma exceção. Para um dos quatro tipos de lipídios, a Alnylam usou uma versão modificada que havia desenvolvido com Thomas Madden.

Em outubro de 2008, Mark Murray, o CEO que MacLachlan havia recrutado para administrar a Protiva, estava em uma sala na Tekmira Pharmaceuticals, uma pequena empresa de fachada de capital aberto da qual ele acabara de assumir o controle. Assim como a Protiva, a Tekmira havia sido criada pela Inex, que tinha acabado por se extinguir um ano antes, mas não antes de transferir à Tekmira todos os seus ativos remanescentes. Estavam reunidos com Murray cerca de 15 ex-cientistas da Inex provenientes da transação, entre eles Thomas Madden.

“Infelizmente, não poderemos mais manter vocês”, Murray disse a eles.

A demissão de Madden foi o resultado de uma intensa briga judicial provocada pelo fato de que a Inex e a Protiva vinham trabalhando separadamente com a Alnylam na entrega de drogas. O litígio duraria anos. Toda vez, Murray e MacLachlan acusavam Madden e Cullis de terem pegado suas ideias indevidamente. Cullis e Madden, ofendidos com as acusações, negavam. Às vezes, eram eles que processavam, alegando que Murray e MacLachlan haviam agido de maneira imprópria.

Jamel Toppin/Forbes

Injeção de grana: o CEO da Pfizer, Albert Bourla, obteve uma receita de US$ 26 bilhões este ano com a vacina.

A primeira rodada de litígios resultou em um acordo em 2008, pelo qual a Protiva assumiu o controle da Tekmira, com Murray como CEO, MacLachlan como diretor científico e Madden demitido em seguida. Apesar dos hematomas, Madden e Cullis fundaram uma nova empresa em 2009 para continuar trabalhando com a Alnylam. A Tekmira reagiu processando a Alnylam, alegando que a empresa de biotecnologia de Massachusetts havia conspirado com Madden e Cullis para obter, por um preço baixo, a propriedade do sistema de entrega desenvolvido por MacLachlan. A Alnylam negou qualquer irregularidade e, é claro, apresentou reconvenções, dizendo que simplesmente queria trabalhar com Madden e Cullis, que tinham criado uma variação aprimorada de um dos quatro tipos de lipídios do sistema de entrega.

Essa rodada de batalhas judiciais foi encerrada em 2012, quando a Alnylam pagou US$ 65 milhões à Tekmira e concordou em devolver dezenas de suas patentes a esta última. Essas patentes incluíam algumas referentes ao lipídio aprimorado que Madden havia desenvolvido para o Onpattro. Nos termos do acordo, a nova empresa de Cullis e Madden recebeu uma licença limitada para usar o sistema de entrega de MacLachlan a fim de criar novos produtos de mRNA a partir do zero.

Foi em meio a toda essa disputa judicial furiosa que a bioquímica húngara Katalin Karikó bateu na porta de MacLachlan. Karikó logo percebeu que o sistema de entrega de MacLachlan era o segredo para liberar o potencial dos tratamentos com mRNA. Já em 2006, ela começou a enviar cartas a MacLachlan pedindo-lhe para inserir o inovador mRNA quimicamente alterado dela em seu sistema de entrega de quatro lipídios. Envolvido em litígios, MacLachlan recusou a oferta.

Karikó não desistia facilmente. Em 2013, ela pegou um avião para se encontrar com executivos da Tekmira, oferecendo-se para se mudar para Vancouver e trabalhar diretamente para MacLachlan. A Tekmira declinou. “A Moderna, a BioNTech e a CureVac queriam que eu trabalhasse para eles, mas a minha escolha número um, a Tekmira, não queria”, diz Karikó, que assumiu um cargo na BioNTech em 2013.

LEIA MAIS: OMS pede interrupção das doses de reforço de vacina contra Covid-19 até final de setembro

A essa altura, o CEO da Moderna, Stéphane Bancel, também estava tentando resolver o enigma da entrega. Bancel teve discussões com a Tekmira sobre trabalharem em colaboração, mas as negociações empacaram. Em determinado momento, a Tekmira indicou que queria pelo menos US$ 100 milhões adiantados, mais royalties, para fechar um acordo.

Então, a Moderna fechou uma parceria com Madden, que ainda estava trabalhando com Cullis na empresa de entrega de medicamentos dos dois, a Acuitas Therapeutics.

Em fevereiro de 2014, MacLachlan fez 50 anos. Sua companheira, Karley Seabrook, atraiu-o até o Imperial Theater de Vancouver, que estava repleto de amigos e familiares. Ela o surpreendeu com um vestido de noiva, e os dois filhos do casal receberam MacLachlan com cartões que diziam “QUER SE CASAR COM A MAMÃE?” Seabrook nunca achou que fosse importante eles se casarem, mas o fato de ter contraído câncer mudou seu ponto de vista – e o casamento mudaria o dele.

As tratativas com advogados e as intermináveis manobras empresariais tinham desgastado o cientista viciado no trabalho. Sentindo-se derrotado, MacLachlan saiu da Tekmira em 2014. Ele vendeu sua participação na empresa, comprou um motorhome Winnebago Adventurer usado por US$ 60 mil e partiu com a nova esposa, os dois filhos e o cachorro em uma viagem de mais de 8 mil quilômetros pelo Canadá.

“Eu estava exausto e desmoralizado”, ele conta.

Com a saída de MacLachlan, o CEO Murray rebatizou a Tekmira com o nome de Arbutus BioPharma e decidiu que a empresa deveria se concentrar na criação de tratamentos para hepatite B em conjunto com a empresa de desenvolvimento de medicamentos nova-iorquina Roivant Sciences. Mesmo assim, ele manteve as patentes do sistema de entrega de drogas com quatro lipídios.

Então, a Acuitas, empresa de Madden, sublicenciou a tecnologia de entrega à Moderna para o desenvolvimento de uma vacina de mRNA contra a gripe. Murray estava convencido de que Madden não tinha o direito de fazê-lo e, em 2016, avisou que pretendia rescindir o contrato de licenciamento com a Acuitas. Como de costume, dois meses depois, a Acuitas entrou com um processo em Vancouver, negando ter violado qualquer acordo. Na mesma hora, Murray contra-atacou com um processo, iniciando uma nova rodada de combate jurídico. Porém, o mais importante é que essa sequência de ações judiciais envolvia diretamente o mRNA.

Steven Ferdman/Getty Images

Justa recompensa: o CEO da Moderna, Stéphane Bancel, tornou-se bilionário em abril último graças à vacina. Hoje, a capitalização de mercado da Moderna é superior à da General Motors e à da Boeing

Depois de mais dois anos de pelejas, as partes chegaram a um acordo. Murray rescindiu a licença de Thomas Madden com relação à tecnologia de entrega de MacLachlan para quaisquer medicamentos futuros, exceto quatro produtos que a Moderna já havia começado a desenvolver (Murray também perdeu os direitos a parte da tecnologia de Madden). Murray e a Roivant criaram, então, outra empresa, a Genevant Sciences, com o propósito específico de abrigar a propriedade intelectual relacionada ao sistema de entrega de quatro lipídios e de comercializá-la.

Algumas empresas logo aderiram. Em poucos meses, o CEO da BioNTech, Şahin, fechou um acordo com a Genevant para usar o sistema de entrega em cinco dos programas de mRNA existentes da BioNTech voltados ao câncer. As empresas também concordaram em trabalhar juntas em cinco outros programas de mRNA direcionados a doenças raras. O contrato não previa o uso da tecnologia de entrega em algo totalmente imprevisto – como a Covid-19.

A Moderna seguiu uma estratégia diferente. Entrou com ações judiciais no Departamento de Marcas e Patentes dos Estados Unidos com vistas a anular uma série de patentes relacionadas ao sistema de entrega de MacLachlan, agora controlado pela Genevant. Contudo, em julho de 2020, quando a Moderna estava submetendo sua vacina a ensaios clínicos, um órgão decisório manteve, em grande medida, os pedidos de patente mais importantes. (A Moderna entrou com recurso.)

Depois que as vacinas da Moderna e da Pfizer-BioNTech foram autorizadas, Drew Weissman, um proeminente pesquisador de mRNA da Universidade da Pensilvânia, concluiu, em um artigo revisado por pares, que ambas usam sistemas de entrega “semelhantes ao produto Onpattro da Alnylam”, mas com uma versão exclusiva de um dos lipídios. Weissman observou que as duas empresas estavam usando o sistema de mistura com junção em T.

Thomas Madden trabalhou no sistema de entrega da vacina da Pfizer-BioNTech e diz que usou versões aprimoradas de dois dos quatro tipos de lipídios. Madden diz que nem o Onpattro nem a vacina da Pfizer-BioNTech teriam sido aprovadas pela FDA sem as melhorias que sua equipe fez nos lipídios.

MacLachlan despreza essas novas variações, chamando-as de “inovação iterativa”.

Em declaração escrita à Forbes, Ray Jordan, diretor de assuntos corporativos da Moderna, afirmou: “Posso confirmar que, de fato, obtivemos uma licença de propriedade intelectual da Tekmira para alguns de nossos produtos mais antigos. Mas nossos produtos mais recentes (inclusive a vacina contra a Covid) usam tecnologias novas”.

A BioNTech não quis comentar. Mikael Dolsten, diretor científico da Pfizer, diz que a vacina da Pfizer-BioNTech está totalmente protegida por patentes e que, ao criar o primeiro produto de mRNA autorizado, a Pfizer modificou o sistema de entrega para produzir 3 bilhões de doses por ano.

“É diferente ter um processo que pode funcionar em escala muito pequena em relação a um que funciona em escala grande, e alguns dos pressupostos que podem parecer semelhantes são baseados na evolução do campo científico e em contribuições de muitas fontes diferentes”, explica Dolsten. “É preciso ter cuidado ao supor que, se as coisas têm nomes e proporções molares semelhantes, isso significa que são a mesma coisa.”

A Genevant não quis comentar, mas a batalha que está travando pode se mostrar difícil. Em maio, o governo Biden apoiou a quebra da proteção à propriedade intelectual relativa às vacinas contra a Covid-19. Ironicamente, esse movimento pode beneficiar a Moderna, a BioNTech e a Pfizer em vez de prejudicá-las, ao impedir que a Genevant faça qualquer reivindicação quanto à montanha de dinheiro das três empresas, proveniente das vacinas.

Isso é bom para Ian MacLachlan, cujo papel no avanço médico que talvez seja o mais importante em um século foi praticamente apagado pelo setor de biotecnologia.

“Eu definitivamente sinto que dei a minha contribuição”, diz ele. “Tenho sentimentos conflitantes por causa da forma como isso está sendo caracterizado, e conheço a gênese da tecnologia.”

Siga FORBES Brasil nas redes sociais:

Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn

Siga Forbes Money no Telegram e tenha acesso a notícias do mercado financeiro em primeira mão

Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.

Tenha também a Forbes no Google Notícias.