Na segunda quinzena de maio, o diplomata brasileiro e atual diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, renunciou à diretoria da entidade um ano antes do fim de seu mandato. Com os trabalhos paralisados por causa da pandemia de Covid-19, o dirigente alegou motivos pessoais e disse que este é o melhor momento para sua saída.
A OMC foi fundada em 1995, a partir da transformação do extinto Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês), e enfrenta uma crise existencial por embates com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (o acordo comercial EUA-China), e pela diversidade da economia de seus membros.
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Azevêdo deve permanecer na instituição até 31 de agosto. O anúncio de sua saída deu a largada para a corrida ao cargo. A escolha do novo dirigente deve enfrentar dificuldades tanto pela pandemia do coronavírus como pelas eleições presidenciais norte-americanas, agendadas para novembro.
Um dos principais candidatos ao posto de diretor-geral é Hamid Mamdouh. De origem egípcia, é figura conhecida na entidade: fez parte do antigo Gatt e do time responsável pela transformação da sigla na atual OMC. “O processo de transição levou anos, mas nós precisávamos disso. A economia do mundo estava passando por mudanças substanciais, assim como o comércio.” Mamdouh permaneceu na organização desde sua fundação até setembro de 2017. Se nomeado, será o primeiro africano a dirigir a entidade.
Para o diplomata, conselheiro do G20 e professor convidado da Queen Mary University of London, a OMC enfrenta um momento de transformação econômica e enfraquecimento similar ao vivido pelo Gatt nos anos 1990. Ele vê sua candidatura como assertiva pela experiência acumulada em 35 anos no mundo dos acordos e negociações comerciais. “Se o seu carro estivesse quebrado, quem você gostaria de ter ao lado? Não seria válido um dos engenheiros que desenhou o automóvel e o ajudou a funcionar nos últimos 25 anos? Eu posso fazer o diagnóstico e apresentar as soluções.”
O papel da entidade é maximizar os benefícios dos acordos comerciais, o que implica o incentivo à expansão das relações de comércio com regras multilaterais que garantam produtividade e estabilidade das negociações – atraindo, como consequência, os investidores.
Parte do enfraquecimento da sigla citado por ele é atribuída à falta de adequação às mudanças socioeconômicas de produção e consumo. O comércio, segundo Mamdouh, “é o elo entre os dois pontos, e os acordos internacionais precisam acompanhar o ritmo de transformação”.
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Assim como membros do G20, Mamdouh é defensor das mudanças de base na entidade. “Não devemos ficar obcecados com o organismo em seu atual formato. É preciso ter uma mente aberta e um olhar analítico para entender qual deve ser a OMC do futuro, e não o futuro da OMC.” E completa: “Não precisamos terminar com a formulação de uma nova sigla, mas é preciso encarar a realidade e canalizar as preocupações para algo maior do que manter o status quo”.
Fôlego brasileiro
Na pauta da pandemia de Covid-19, o quadro econômico brasileiro preocupa. Segundo estimativa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), os pequenos negócios respondem por 99% dos estabelecimentos comerciais no país e empregam cerca de 50% da força de trabalho. Paralisados ou com capacidade reduzida de operação, o momento pede medidas centradas, rápidas e assertivas para a sobrevivência dos empreendimentos. Mamdouh considera a crise “sem precedentes e sem culpados” e ressalta que a dimensão do problema afeta a produção, o consumo e a comercialização. “Especialmente no Brasil, esse é o momento em que os governantes precisam agir com rapidez para salvar quem não tem fôlego. Claro que a conta a ser paga futuramente é alta. Por isso a ação deve ser pontual e bem direcionada para que os menores não fiquem à deriva e sejam capazes de manter o funcionamento e a empregabilidade.”
“É possível ter uma economia sem agricultura ou manufatura, mas nunca carente de serviços.” - Hamid MamdouhPara o diplomata, a dependência econômica brasileira de commodities agrícolas e o baixo valor agregado dos produtos requerem apostas consistentes e massivas no setor terciário. “É possível ter uma economia sem agricultura, como Singapura e Hong Kong, ou sem manufatura, mas nunca carente de serviços. O Egito, por exemplo, é o sexto país no mundo em produção de vegetais frescos. Mas essa capacidade produtiva não é refletida na performance de exportação ou nos mercados locais. E isso porque fazer tomates brotarem é uma coisa, colocá-los nas prateleiras dos supermercados é outra. Nesse caso, também há carência de investimento no setor terciário, que vai da pesquisa aos testes e design de embalagens.” Segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o agronegócio brasileiro representou 21,4% do PIB de 2019.
Sobre a estrutura profissional de base do país, que interfere diretamente nos assuntos econômicos, ele coloca em pauta a urgência de investimentos no setor da educação. “Existe um desnível entre o que o sistema de ensino produz e o que o mercado de trabalho demanda. O modelo educacional precisa ser capaz de ensinar como pensar e não o que pensar. A economia não precisa de indivíduos com um disco rígido na cabeça. Os dados podem ser acessados na ponta dos dedos”, avalia. “Formar pessoas com capacidade analítica pode ser a saída para o aprendizado duradouro e a longevidade profissional. Infelizmente, isso não é um ponto atrativo para mandatos políticos por demandar alto grau de investimento, com retornos de longo prazo.”
Novos ares
Os benefícios ambientais de redução do CO2 causados pela forte redução das atividades de tráfego aéreo e rodoviário devem gerar pressão nas companhias de transporte no pós-pandemia, para que não voltem aos antigos patamares de poluição. Dados do relatório Transport and Climate Change 2018 apontam o setor de transportes como o responsável por 23% da emissão de dióxido de carbono entre 2000 e 2016, o que equivale a 7,5 gigatoneladas.
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A multilateralidade, para ele, é levada como princípio básico na busca de saídas para dilemas em comum. Mamdouh afirma que problemas em larga escala não devem ser resolvidos domesticamente: “O coronavírus vai nos deixar a lição de mais cooperação. Não podemos escapar do princípio econômico de que crises globais requerem soluções conjuntas”. Ainda no comando da OMC, Azevêdo solicitou aos governos que não colocassem barreiras na exportação de alimentos e itens de uso médico ( leia mais sobre a gestão do brasileiro abaixo).
Oportunidades
Na temática das oportunidades geradas pela pandemia, o egípcio frisa que o impulsionamento dos negócios digitais será um dos efeitos mais duradouros, assim como a adoção do home office nas relações de trabalho. “A crise acelerou o processo de transformação digital que temos acompanhado há algum tempo.” Dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm) mostram que o e-commerce teve 30% de crescimento no mês de abril em relação a março, com 4 milhões de novos consumidores – que devem continuar comprando online após o período de isolamento. Somente no período analisado, a venda virtual de brinquedos registrou salto de 400%.
GESTÃO BRASILEIRA
Engenheiro e diplomata de carreira, Roberto Azevêdo foi o primeiro latino-americano a assumir a diretoria geral da Organização Mundial do Comércio. No cargo desde 2013, cumpria seu segundo mandato, com término inicialmente previsto para agosto de 2021.
Considerado um dos brasileiros que mais entendem de negociações comerciais, Azevêdo trabalhou nas embaixadas dos Estados Unidos e do Uruguai, foi chefe da delegação brasileira da Rodada Doha e subsecretário-geral para Assuntos Econômicos e Tecnológicos.
Entre os feitos do ainda diretor-geral na OMC estão o Acordo de Facilitação do Comércio (AFC), o primeiro aprovado desde a fundação da entidade, e a eliminação de subsídios à exportação de produtos agrícolas para países desenvolvidos e em desenvolvimento. No início da crise causada pela Covid-19, Azevêdo pediu aos governos que não estabelecessem restrições à exportação de alimentos e insumos médicos.
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