O brasileiro Miguel Nicolelis é um dos maiores nomes da neurociência mundial. O médico, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e Ph.D em Fisiologia e Biofísica pela Universidade de Hahnemann, nos Estados Unidos, foi professor e pesquisador por mais de 30 anos no departamento de neurociência e engenharia biomédica da Universidade de Duke — que figura constantemente no topo das listas de melhores universidades do mundo.
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No Brasil, o trabalho de Nicolelis ganhou destaque durante a Copa do Mundo de 2014, quando ele liderou o projeto que permitiu que um jovem paraplégico chutasse a bola na abertura da competição. O chute simbólico, assistido por mais de um bilhão de pessoas, foi possível graças a um exoesqueleto alimentado por uma interface cérebro-máquina.
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Recentemente, Elon Musk ganhou as manchetes mundo afora ao implantar um chip em um paciente da Neuralink, sua startup de estudos neurológicos. No anúncio oficial, a empresa publicou: “O primeiro humano recebeu um implante da Neuralink”. No entanto, o assunto repercutiu como se o bilionário fosse pioneiro na área — título que Miguel Nicolelis reivindica.
“Eu criei há 25 anos as técnicas de implante para interfaces cérebro-máquina. Musk disse que o paciente dele foi bem-sucedido e controlou um cursor de computador, desculpa, mas meu laboratório fez exatamente a mesma com onze pacientes em 2004. E tem quem acredite que ele é super revolucionário”, comenta o neurocientista brasileiro.
Atualmente, após a aposentadoria do cargo acadêmico na universidade norte-americana, o cientista decidiu ampliar seu projeto pessoal, o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, que pretende ajudar mais de um bilhão de pessoas com doenças medulares e neurológicas.
Em entrevista à Forbes Brasil, Miguel Nicolelis compartilha algumas novidades do instituto, reforça a importância da ciência para o avanço da medicina e provoca reflexões sobre o papel da tecnologia:
FB: Por que você escolheu trabalhar com a interface cérebro-máquina não-invasiva?
MN: Há 25 anos, no meu laboratório, eu criei as técnicas de implante para interfaces cérebro-máquina [à época testadas em animais] para entender como elas deveriam funcionar.
Entretanto, em 2014, quando eu voltei para o Brasil durante o projeto da Copa do Mundo, eu entrevistei diversos pacientes e, junto com a minha equipe, cheguei à conclusão quase unânime de que eles queriam voltar a andar, mas sem se submeter a uma cirurgia.
Então, começamos a quebrar a cabeça para construir alternativas não-invasivas. E nós conseguimos ir além, as interfaces cérebro-máquina não-invasivas que testamos conseguiram ajudar os pacientes de maneira crônica. Eles recuperaram movimentos de forma parcial, voltaram a sentir determinadas partes do corpo, algo que nunca tinha sido feito em décadas de pesquisa e tratamentos de lesões medulares.
De lá para cá, comecei a concretizar a ideia de que, para escalar esse tratamento, para que a tecnologia possa atingir o máximo possível de pacientes, não tem como trabalhar com técnicas invasivas. Esse é o primeiro mandamento da Medicina, tudo o que você fizer não pode colocar a pessoa em mais risco do que ela já está.
FB: De onde surgiu o interesse de Elon Musk pela interface cérebro-máquina?
MN: Nós, cientistas, precisamos esperar anos para que as revistas científicas publiquem nosso trabalho. Mas aí chegam pessoas como o Elon Musk, que só publicam algumas linhas nas redes sociais, sem nenhuma informação, nenhum dado, nenhuma referência, e as pessoas acreditam veementemente. É uma injustiça com os verdadeiros profissionais, cientistas e pesquisadores.
Quando ele fala que o paciente dele foi bem-sucedido e controlou um cursor de computador, desculpa, mas meu laboratório fez exatamente a mesma coisa há 20 anos com onze pacientes. E tem quem acredite que isso é super revolucionário.
Outra questão, além da falta de embasamento, é a mercantilização da pesquisa científica. Hoje virou moda na comunidade científica criar startups, só que isso é um problema. Porque a prioridade deixa de ser o estudo e passa a ser o dinheiro. Eles publicam casos de um paciente para conseguir levantar investidores. Só que isso está errado. Na ciência, nós não podemos afirmar nada a partir de um paciente.
Essa cultura de startups cria um grande conflito de interesses. Hoje, se você publica algo que refuta a tese de uma startup, você pode destruir um negócio de milhões de dólares.
FB: Quais são os riscos dessa mercantilização da ciência?
MN: Olha, tem muita ideia boa que vai funcionar e já está funcionando. Mas tem coisa que é fantasia de bilionário. Temos que saber separar. Não existe nenhuma mágica. E, por exemplo, para uma família que tem uma pessoa com deficiência, é muito difícil acreditar em algo fantasioso.
Quando o Elon Musk fala que ele vai usar um chip para que pessoas possam jogar videogame com o pensamento, ou fazer upload de conteúdo no cérebro, ele está inspirado em filmes de ficção científica. Essas suposições vão contra as leis da física, o cérebro não é um computador, ele é uma máquina analógica, biológica e orgânica.
E nenhum sistema regulatório do mundo vai aprovar que façam implantes cerebrais em pessoas saudáveis. Nenhum bom neurocirurgião vai querer fazer isso. Existem riscos sérios de infecção, rejeição e até mesmo do dispositivo parar de funcionar. Eu sei disso porque no meu laboratório nós temos o recorde mundial de duração, foram nove anos de funcionamento de chips implantados em macacos.
FB: Como será o futuro da ciência e tecnologia?
MN: Nós criamos quase que um culto à tecnologia, e as pessoas têm pouco conhecimento quando elas usam essa palavra. Desde que a tecnologia se associou à modernidade, a transformações de grande impacto, ela ficou dissolvida no imaginário coletivo.
E isso não é necessariamente verdade, a tecnologia não vai resolver os problemas dos humanos, os humanos vão ter que resolver seus próprios problemas. A tecnologia não é um milagre. Ela tem que ser vista com um olhar crítico e ético.
No caso da medicina, é óbvio que a tecnologia ajuda, muitas ferramentas foram fundamentais para o desenvolvimento da área, mas não é porque você inventa algo inédito que isso pode ser implementado na vida clínica e cotidiana dos médicos. Se o mecanismo não oferecer segurança, se não for eficiente e se não for acessível do ponto de vista de custo, ele não vai ser incorporado. Esses três critérios têm que ser preenchidos de maneira categórica.
FB: O que é o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro?
Miguel Nicolelis: Depois da pandemia, no final do período crítico, eu decidi sair da Duke e criar o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, que tem sede em São Paulo (Brasil), na Carolina do Norte (EUA), e agora em Milão (Itália).
No início de março, junto com o hospital IRCCS San Raffaele, o maior hospital privado da Itália, nós anunciamos o primeiro polo de neurotecnologia institucional da Europa. Esse é só o começo, a meta é levar hubs como esse para todos os continentes.
Nosso objetivo é coordenar e disseminar os protocolos de tecnologias não-invasivas por diferentes partes do mundo para tratar pacientes com doenças neurológicas e medulares, como paraplegia, Parkinson, derrame, depressão e ansiedades crônicas e assim por diante. Segundo a OMS, quase dois bilhões de pessoas no mundo sofrem com esse tipo de doença. Então optamos por um tipo de tratamento escalável, eficaz e duradouro — o que não é possível com técnicas invasivas.