Foi nas calçadas do bairro do Cambuci e na frente da estação de metrô São Bento que os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo deram seus primeiros rodopios. Além de dançar, inclusive em festinhas de aniversário, os gêmeos (nascidos em 29 de março de 1974) discotecavam entre versos afiados de combate, esvaziavam latas de spray em muros da cidade
e mandavam rima em festivais de rap, como o do parque da Aclimação e o da TV Gazeta, na Avenida Paulista. “Era 1986, 1987, estava todo mundo começando: o DJ Hum, o Thaíde, o MC Bronks…”
Quando os dois moleques univitelinos e criados a canetinha trombaram com a cultura hip-hop, os desenhos pularam do papel para os muros. Grafite em essência: na calada da noite, ilegal e sob o olhar torto de pedestres e o cassetete da polícia. Viajaram pelos quatro cantos da cidade, deixando digitais inconfundíveis em cumes de arranha-céus, muros, paredes, trens e postes. “Muita gente passou a ver, conhecer e se interessar pelo nosso trabalho nas ruas. Mas, apesar de ser uma época com pouco intercâmbio, nossas primeiras exposições foram lá fora. Não tinha internet, nada. Como tudo era em revistas e livros, a gente começou a fazer uma revista, a ‘Fiz’. Saía na rua fotografando tudo que via, publicava e mandava lá para fora. Eles faziam a mesma coisa.”
Foi assim que grafiteiros do Hemisfério Norte descobriram o Brasil e passaram a desembarcar em São Paulo, curiosos com o estilo dos artistas que começavam a rabiscar e colorir a cidade. “Em 1993 ou 1994, o [norte-americano] Barry McGee veio fazer um intercâmbio cultural no [museu] Lasar Segall e viu um trabalho nosso na Paulista, lá embaixo, sabe? Quando ele se deu conta da grandeza do grafite brasileiro, fez uma matéria na [revista] ’12 Oz Prophet’. Começamos a ficar conhecidos lá fora, até que, anos depois, em 1998, o Loomit e o Peter [Michalski], dois artistas alemães, vieram para o Brasil pintar com a gente. Do encontro nasceu nossa primeira exposição na Europa (na Alemanha), e, a participação no Isart, um festival de grafite de Munique, onde conhecemos artistas do mundo inteiro, inclusive muitos que eram nossa fonte de inspiração, como o [francês] Mode 2, um dos maiores.”
Desde então, os gêmeos rodopiaram como moinhos pelo planeta. Sem abandonar as bombings – saídas para grafitar na rua –, renderam-se sem pudor (porque não há por que tê-lo) aos convites para colorir paredes mundo afora. Seus ilustres seres amarelos (e de outras cores) com roupas estampadas em cenários lisérgicos e oníricos tomaram conta de espaços públicos em mais de 60 países – Portugal, Alemanha, Suécia, Austrália, Cuba, Canadá, Estados Unidos…
EXPOSIÇÃO NA PINACOTECA
Aos 46 anos, sem filhos, barbas soltas, cabelos grisalhos, avessos a qualquer droga e morando em apartamentos vizinhos em um prédio no centro da capital paulista, osgemeos – com letras minúsculas, tudo junto e sem acento, como eles assinam – estão prestes a abrir a maior mostra da carreira. Entre desenhos, pinturas e esculturas, mais de 600 obras já estão a postos nas sete salas e no pátio externo e no imponente octógono da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
VEJA TAMBÉM: Juliana Vellozo Almeida Vosnika trabalha pela “arte com o poder de iluminar o mundo”
Para não restarem dúvidas, os irmãos esclarecem: “A exposição na Pinacoteca não tem nada a ver com grafite ou street art. A gente ama grafite. O grafite é especial, só tem essa força e essa energia a partir do momento que está na rua, de forma ilegal. Quase 90% do que a gente pintou na rua não existe mais. É isso que dá a atmosfera mágica do grafite, só quem faz entende. Mas são dois mundos separados: o universo da rua é um, o universo de exposição é outro.”
Além dos desenhos supracitados – feitos na infância sob a tutela de Arnaldo – e dos preciosos caderninhos de anotações que os irmãos levam pra lá e pra cá, outros trabalhos inéditos expostos na Pinacoteca são as criações da época em que os gêmeos preferiram estudar em casa a fazer faculdade. “Na adolescência, as coisas aconteciam sem muita perspectiva. A gente queria desenhar e precisava trabalhar para ajudar em casa. Em uma funilaria, onde a gente conseguia tinta, em lanchonete, em locadora, como boy em banco… A gente fez um colegial técnico de desenho e comunicação na Carlos de Campos, no Brás. Ali conhecemos o Speto [grafiteiro da primeira leva], que trabalhava como ilustrador para revistas. Ele incentivou, e a gente viu uma possibilidade de viver de desenhar. Não sei como veio o primeiro dinheiro, se com ilustração ou se pintando a porta de uma loja para poder comprar tinta e pintar na rua.”
Mas e a história da faculdade? “Depois do Carlos de Campos, a gente teria que entrar na faculdade. Não passou na nossa cabeça ser engenheiro, médico, nada. A gente queria desenhar e decidiu fazer a nossa própria faculdade, em casa, aqui no Cambuci. Nossos pais sempre entenderam que esse era nosso universo. Chegamos para eles e falamos: ‘A gente vai fazer nossa faculdade em casa, vai estudar e viver disso. Vai desenhar e levar a vida como artista, como ilustrador, como pintor. É nisso que a gente acredita’. Então a gente transformou o quarto em um estúdio de desenho e se fechou por quatro anos para estudar. Experimentamos todo tipo de pintura e de escultura, todos os estilos, todas as técnicas. Óleo, aquarela, aerografia, pastel, guache, spray…”
Dessa busca por autenticidade, pariram Tritrez, como eles batizaram o universo retratado em suas obras – um blend de Nordeste brasileiro com hip-hop norte-americano, de urbano com indígena, de melancolia com felicidade, de calma com ativismo; um mundo fantástico com bicicletas, estrelas, música, bichos, barcos, balões e bugigangas coloridas. “É tudo muito lúdico. A gente deixa aberto para as pessoas interpretarem, mas esse universo é muito importante, muito pessoal, muito sério. É como se a gente desenhasse nosso sonho todo dia.”
E TAMBÉM: Camila Yunes: SP-Arte Viewing Room será virtual
Para Danilo Oliveira, artista plástico e professor de história da arte, o trabalho da dupla parte de um universo muito particular. “É possível observar elementos que remetem à cultura popular brasileira, ao artesanato, o balão de São João, as brincadeiras infantis brasileiras, a colcha de retalhos, a roupa remendada. Alguns personagens denotam certa precariedade, certa melancolia, solidão, e muitos têm uma potência de acontecimentos relacionada com essa memória coletiva.” Há quem veja os seres vestidos com roupas de estampas coloridas criados pelos irmãos como parte da iconografia da arte brasileira, tal como as bandeirinhas de Volpi e as mulatas de Di Cavalcanti. Ou até, sob um olhar estrangeiro, os girassóis de Van Gogh e os corpos volumosos de Botero. Exagero?
Seja como for, querendo ou não, os gêmeos circulam pelo mercado de arte contemporânea há quase duas décadas. Talvez o lance inicial tenha sido na exposição na Deitch Projects, do marchand Jeffrey Deitch, em Nova York, em março de 2005. Deitch representa ou representou, entre outros gigantes, Jean-Michel Basquiat, Jeff Koons, Keith Haring e o já citado Barry McGee. Foi o catálogo dessa exposição que fez crescer os olhos da Fortes D’Aloia & Gabriel, galeria de São Paulo, que, ao lado da Lehman Maupin, de Nova York, representa os irmãos.
Alexandre Gabriel, sócio da Fortes, conta que ficou impressionado ao ver o trabalho da dupla no catálogo. “Era uma expressão fora da arte contemporânea tradicional, de muita qualidade, e que já estava sendo absorvida fora do Brasil. Nosso interesse inicial foi absorver esse universo mais pop e atrair uma visitação de outra natureza, um público que não é apenas de arte. Quando fizemos a exposição de 2006 [considerada a primeira grande mostra individual no Brasil de um artista vindo das ruas], o retorno foi muito maior do que o imaginado. Lotou todos os dias. Tivemos que adiar o término por duas semanas, e no último dia, um sábado, precisei fechar às nove da noite, distribuindo senha com gente na fila brigando para entrar.”
Também querendo ou não, os irmãos estão com o pé de meia feito. Segundo Gabriel, as obras da dupla custam a partir de R$ 250 mil e podem ultrapassar R$ 1,2 milhão. Há quem fale que o valor esteja muito acima desse patamar. “Nosso valor em dinheiro não importa, não se compara com o lado espiritual dos nossos desenhos. É muito bom fazer e viver daquilo que você gosta. Todo mundo tem esse sonho, de ter prazer e ser remunerado por isso. Mas o mais importante é saber controlar isso dentro de você. O valor do seu trabalho não é apenas o mercado da arte que coloca, mas é como esse valor foi construído. Existe uma trajetória, uma construção. Nós fizemos da nossa maneira, e foi 100% com o coração. Independentemente de viajar o mundo inteiro, de fazer exposição, de ganhar dinheiro, de ser conhecido e de ser famoso, desenhar é uma necessidade, um prazer, uma paixão que começou, a gente não esquece, aqui no Cambuci. A gente veio do cenário underground e conseguiu chegar onde chegou. Esse é o maior valor que a gente tem.”
Reportagem publicada na edição 77, lançada em maio de 2020
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias.