Sal, gordura e açúcar: como nos tornamos viciados em comer

2 de novembro de 2022
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Ciência explica como a indústria de alimentos altamente calóricos cria sistemas de recompensa do cérebro

“Por que não consigo me impedir de comer demais?” Esta é uma pergunta que, para muitos, não pode ser respondida simplesmente como falta de motivação ou de herança genética. É aquela sensação de querer comer o último pedaço de sobremesa, mesmo sabendo que estava cheio no meio do jantar. Logicamente, você sabe que seu corpo não precisa de mais comida, mas parece haver uma força interna que se fixa no sabor da próxima mordida.

David Kessler, em seu best-seller do New York Times, The End of Overeating (O fim dos excessos, não publicado em português), descreve como a indústria alimentícia norte-americana (e que se espalhou para o mundo como modelo) construiu e continua a lucrar com essa dissociação. O ex-comissário da FDA (Food and Drug Administration) expõe a ciência por trás da alimentação altamente calóricos e os sistemas de recompensa do cérebro que levaram a uma epidemia de excessos.

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Embora mais de uma década tenha se passado desde que este livro foi publicado, milhões de pessoas continuam lutando contra o excesso de comida crônica que, para alguns, levou ao peso incontrolável. A compulsão de comer demais, muitas vezes, não se encaixa perfeitamente em nenhum transtorno alimentar definido. Como resultado, os indivíduos são culpados por sua própria falta de motivação para controlar seu peso.

O que é “comer demais”?

Simplificando, comer demais é definido como comer alimentos além do que o corpo precisa, até o ponto de se sentir desconfortavelmente cheio. Muitos podem ter na memória aquele momento em que, de férias ou no jantar de Ação de Graças, foi preciso afrouxar a fivela do cinto ou abriu o primeiro botão da calça para dar espaço para outro prato de comida. Comer demais acontece inconscientemente e muitas vezes as pessoas não percebem que comeram além das necessidades do corpo, até que seja tarde demais.

Comer demais pode ser um sintoma, mas não, por si só, ser diagnosticado como um transtorno alimentar. Em casos extremos de transtorno da compulsão alimentar periódica, por exemplo, uma pessoa experimenta episódios em que come compulsivamente grandes quantidades de comida em um curto período de tempo, a ponto de causar sofrimento emocional significativo. Em um esforço para compensar as consequências do ganho de peso, um indivíduo pode ser obrigado a purgar ou tomar outras medidas drásticas para evitar o ganho de peso.

A maioria das pessoas que come demais não se qualifica para transtorno de compulsão alimentar. A menos que você sinta que não pode se controlar, fisicamente, para comer e sentir vergonha ou culpa durante e após os episódios de compulsão alimentar, provavelmente não tem essa condição médica estabelecida. Mesmo que comer demais não seja um transtorno alimentar definido, as pessoas que comem demais rotineiramente ainda podem sentir muita ansiedade em torno da comida.

Indivíduos que parecem estar acima do peso ou obesos não são os únicos afetados. Mesmo as pessoas com um peso relativamente normal podem lutar com a preocupação em relação à comida. Indivíduos propensos a comer demais geralmente descrevem a sensação de que não conseguem parar de pensar em comida. Imediatamente, depois de terminar uma refeição, eles não podem deixar de pensar na próxima refeição ou no lanche. Seu dia inteiro parece girar em torno de comer.

O que torna algumas pessoas propensas a comer demais e outras não?

Embora a genética desempenhe um papel na manutenção do peso, não existe um “gene da gordura”. De fato, durante a maior parte da história humana, o peso da população permaneceu relativamente estável. A obesidade era uma ocorrência rara, e a maioria das pessoas comia apenas até se sentir saciada.

Nos últimos 100 anos, no entanto, a comercialização da indústria alimentícia e a terceirização de refeições caseiras para restaurantes aumentaram drasticamente o peso do norte-americano médio. A comida não só se tornou mais acessível, mas também muito mais barata de produzir. Para reduzir ainda mais os custos, a indústria alimentícia incorporou cada vez mais açúcar e gordura baratos à dieta norte-americana. Como argumenta o Dr. Kessler, “o problema não é o peso, o problema é o que estamos comendo”.

Não é você, é a indústria alimentícia

A dieta norte-americana é projetada para apelar a todos os seus sentidos. Pense na sua rede de fast-food favorita. O primeiro passo dado pelo restaurante é que você sinta aquele cheiro muito familiar de graxa que automaticamente faz dar água na boca. À medida que você estuda o cardápio, imagens rechonchudas de pratos com curadoria artística chamam sua atenção. Devo também comer uma porção de batatas fritas? Esses milkshakes também parecem bons.

Assim que você faz seu pedido, ouve o som de hambúrgueres chiando na grelha e batatas entrando na fritadeira. Ah, isso vai ser bom. Em pouco tempo, seu pedido está pronto. Você procura a mesa perfeita, fantasiando sobre o quão boa será a primeira mordida. E isso acontece. A primeira mordida derrete na boca, quase sem esforço para mastigar. A combinação perfeita de sal, gordura e açúcar dança em suas papilas gustativas. Ele desce com muita facilidade e antes que você perceba, você comeu centenas de calorias em apenas uma refeição.

A indústria alimentícia sabe do que gostamos e como nos fazer voltar. Em seu livro, o Dr. Kessler fala diretamente com líderes de algumas das redes mais bem-sucedidas do país. “O que cria irresistibilidade é carinho, atenção, apelo visual e o apelo de aroma, textura e consistência”, diz Jerilyn Brusseau, a mulher por trás do Cinnabon (rolo de massa com canela criado em 1985 e que ficou famoso em todo o mundo). “Essas combinações de gordura-açúcar-gordura-sobre-sal-gordura geram múltiplos efeitos sensoriais. Que é exatamente o que a indústria quer”, acrescenta Dr. Kessler.

Não é apenas fast-food. Vamos pegar uma barra de Snickers ( da marca Mars). Ele é uma barra de biscoito de nougat assada com muito açúcar e gordura e é, então, coberta com amendoins que são fritos em mais óleo e depois salgados. Se isso não bastasse, uma camada pesada de caramelo é derramada sobre o nougat antes que toda a barra seja mergulhada em uma mistura espessa de chocolate ao leite. Como alguém pode resistir?

Em seu livro, o Dr. Kessler entrevista longamente Gail Vance Civille, uma consultora de alimentos que atua como presidente fundadora da Sensory Spectrum Inc. “O caramelo envolve os pedaços de amendoim para que todo o doce seja retirado da boca ao mesmo tempo”, escreve o Dr. Kessler.

Alimentos de alto teor calórico parecem, sentem e têm um gosto bom porque exploram nossos desejos carnais de buscar prazer. Como o sexo ou as drogas, tem como alvo áreas do nosso cérebro que nos mantêm querendo mais, mesmo depois que nossos estômagos estão cheios.

Então, como ficamos?

Não podemos eliminar o caminho da recompensa que impulsiona nosso desejo de comer, nem queremos. Ao contrário de outros estímulos de alta relevância, como drogas e álcool, precisamos comer todos os dias para sobreviver. Estar ciente desses caminhos de recompensa pode nos ajudar a entender por que alguns alimentos são irresistíveis e como podemos superar o impulso de comer demais. Mas, honestamente, isso é mais fácil dizer do que fazer.

* William A. Haseltine é colaborador da Forbes EUA, cientista e escritor. Já foi, por quase duas décadas, professor na Harvard Medical School e na Harvard School of Public Health, onde fundou dois departamentos de pesquisa acadêmica, a Divisão de Farmacologia Bioquímica e a Divisão de Retrovirologia Humana. Atualmente, é presidente da Access Health International, organização sem fins lucrativos que promove soluções inovadoras para os maiores desafios de saúde nos dias atuais.