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Mal terminamos as apresentações e ele começa a falar, praticamente sem sotaque: “Primeiro quero conversar sobre a Copa do Mundo”. Não se tratava das boas campanhas de Brasil e Uruguai nas eliminatórias para o Mundial da Rússia, em 2018. Ele queria falar sobre comida – seu assunto favorito desde que se conhece por gente. Mais exatamente, sobre a experiência de fornecer alimentação em um grande evento, desafio inédito até aquele Mundial de 2014, no Brasil.
Voltemos ao ano de 2012. “Havia dois grandes horizontes diante de nós: a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016. A empresa mundial que costumava atender a Fifa era a americana Aramark, terceira maior do mundo em alimentação coletiva e especializada em grandes eventos”, explica Mendez. “As duas maiores do mundo estão instaladas no Brasil, mas a Aramark não. Então sempre tivemos um bom diálogo com eles sobre o mercado, perspectivas, essas coisas. E ela viu na Sapore um parceiro potencial para participar desses megaeventos que aconteceriam no Brasil”, conta.
O Conselho de Administração tinha proibido Mendez de falar com o COBMas, cada vez que pensava no quanto tudo isso era diferente do modus operandi da empresa que havia erguido do zero – e que já havia passado por um traumático período de quase falência poucos anos antes – Mendez suava frio e desconversava. Seu forte era fazer a comida no local, nas dependências do cliente. “Não tínhamos tecnologia nem queríamos entrar nesse negócio de fazer comida em um lugar e transportar para outro. O risco de comprometer a qualidade era muito grande. Eu não tinha estrutura para isso.”
Mas os americanos começaram a marcar sob pressão. “Let’s do it together, Mr. Mendez!”, diziam. “Nem pensar”, ele respondia. Eles insistiam, davam garantias, diziam que a empresa brasileira ia alimentar os atletas, a imprensa e os organizadores, uma coisa mais próxima do universo corporativo… Piece of cake.
Para dar conta do recado, deslocou um exército de funcionários de seus locais e funções habituais. “Trabalhamos loucamente. Operacionalmente, foi um sucesso. Contabilmente, tive um prejuízo de R$ 5 milhões – certamente perdemos muito mais por causa do deslocamento de nosso pessoal de suas operações normais para atender os estádios. Além disso, até hoje não recebemos parte do que foi contratado”, lembra ele, sem tirar o sorriso do rosto. Os parceiros da empreitada, segundo ele, tiveram lucro.
Era de esperar que a Sapore nunca mais entrasse em uma “roubada” do tipo. Mas, quando a Olimpíada do Rio começou a despontar no horizonte, os americanos iniciaram outro ataque. “Vieram com a conversa de que agora ia ser diferente, que iam cobrar uma taxa sobre os custos, que eu ia ser sócio de todo o negócio, e isso e aquilo…”, relembra Mendez. “Obrigado. Não tenho interesse. E não vou fazer.”
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“Aí foi o pessoal do COB que começou a me ligar: ‘Vocês não vão participar da concorrência?’ Foram tantas ligações e tantos ‘nãos’ que lá pelas tantas acabei falando: ‘Olha, se existe alguma coisa que poderia me interessar não é nenhum estádio, nenhuma arena. É a Vila dos Atletas’. É o que haveria de mais complexo e maior, mas ali, imaginei, eu poderia ter uma estrutura condizente com o nosso trabalho. ‘Mas essa parte já tem dono’, disse-me a pessoa do outro lado. ‘Um consórcio ganhou.’ ‘Então, por favor, não me liguem mais’.”
Houve, de fato, um período de silêncio. A menos de um ano da cerimônia de abertura, o time do COB tomou uma “bola nas costas” do tal consórcio e saiu da retranca: “Olha, a gente não vai mais fechar com eles e queríamos que você repensasse.” Mendez conta que rapidamente desligou o telefone – tinha sido proibido pelo Conselho de Administração de voltar a falar com o COB. Além da boa imagem deixada na Copa do Mundo, não havia outras opções no Brasil. O evento se aproximava e tudo estava assustadoramente atrasado.
Em uma reunião de resultados, ainda em 2015, a curva de faturamento projetava uma queda brutal no valor habitual de R$ 1,3 bilhão se nada fosse feito. As montadoras e o setor de autopeças, grandes clientes da Sapore, estavam demitindo. “Se eles reduzem, eu reduzo também.” Dias depois, conversando com um amigo publicitário, Mendez ouviu o seguinte diagnóstico: “Para o ano que vem, as perspectivas não são melhores que as de 2015, ao contrário. O único alento é a Olimpíada”.
Ligaram. Mendez despejou seu caminhão de exigências (“dizem que a única coisa mais complicada para organizar do que uma Olimpíada é uma guerra, então eu não podia mais correr riscos”). Em outubro de 2015 (“um tempo curtíssimo para tanto trabalho”), começou a se dedicar à Rio 2016.
“Duas coisas me preocupavam. A primeira era não receber. Eu precisava ter garantias claras de pagamento. Eles diziam que o COB e o governo do Rio davam garantia. ‘Nada disso, ou me pagam adiantado ou dão uma carta de crédito de um banco de primeira linha, de preferência o que está patrocinando a Olimpíada. Não vou fazer nada sem garantia’, eu falei.” Faltando três meses para o início, ele conseguiu as duas coisas: um adiantamento e a carta-fiança. “Estávamos com cerca de 300 pessoas contratadas e precisávamos ainda de mais 2.400”, afirma. Às pressas, teve que convocar esse contingente e treiná-lo (acabou tendo um mês e meio para isso).
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A forma que encontrou para blindar esse risco foi criar “a maior e melhor forma de rastreabilidade que já existiu em uma Olimpíada”, como descreve. “Nosso sistema era capaz de monitorar um grão de arroz desde a origem até a hora de ser consumido.”
Também pela primeira vez nos Jogos, os pratos seriam finalizados na frente (e ao gosto) de cada atleta. Cerca de 20 fornos alemães de última geração (perto de R$ 100 mil cada um) foram instalados na Vila dos Atletas.
“Foi um espetáculo de gastronomia. Atendemos todas as etnias, religiões, costumes… Importamos produtos, molhos, temperos e até chefs. Foi sem dúvida a alimentação de melhor qualidade da história das Olimpíadas”, garante.
Dessa vitrine já surgiram parcerias com os inúmeros eventos realizados quase diariamente no World Trade Center, em São Paulo, na nova sede da L’Oréal, no Rio, e nas casas de espetáculos ligadas à Time For Fun, além do festival de música Lollapalooza (que deve atrair mais de 250 mil pessoas em três dias de shows no autódromo de Interlagos, em março de 2018).
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Por tudo isso, Mendez diz comandar hoje “a maior empresa nacional em alimentação coletiva”. “Este ano fizemos R$ 2 bi – e agora temos uma coisa que ninguém tem: a capacidade de fazer algo com a complexidade de uma Copa do Mundo e de uma Olimpíada com uma qualidade técnica e operacional igual ou melhor que dos maiores do mundo.”
FAMÍLIA NÔMADE
Daniel Rivas Mendez nasceu há 55 anos em Montevidéu, filho de um garçom (Gilberto) e de uma cabeleireira (Alda) que se casaram aos 20 anos de idade. O pai vinha de uma família desestruturada (“meu avô era um militar que casou quatro vezes e morreu cedo”) e a mãe era órfã.
O jovem casal não criava raízes, sempre em busca de um futuro melhor para Daniel e sua irmã Adriana. Época de ditaduras pela América do Sul. De Montevidéu foram para Buenos Aires. Quando o Uruguai parecia ter melhorado um pouco, voltaram. Os confrontos entre os guerrilheiros tupamaros e as Forças Armadas, no entanto, atingiram níveis insuportáveis – e a família Mendez atravessou a fronteira outra vez.
O DINHEIRO SUMIU
“Viemos para o Brasil quando eu tinha 11 anos. Aqui não tinha esse negócio de chef – pelo menos em Pelotas, para onde a gente se mudou. Por isso, lá meu pai conseguiu emprego no melhor restaurante da cidade. E, como ele era muito simpático e comunicativo, virou a sensação. Até na televisão ele aparecia”, conta Mendez.
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Mas Gilberto não parava no lugar. O desapego levou a família para um novo endereço: Jaguarão, na fronteira do Brasil com o Uruguai. “Eu atravessava a ponte para estudar no Uruguai, onde o ensino era melhor, e na volta ia servir os clientes no restaurante do meu pai (ele ganhou o espaço num hotel, não pagava nada graças à fama que tinha no Sul).”
Dessa vez, parecia que a vida ia sossegar. Gilberto chegou a ter três restaurantes na pequena Jaguarão. “Ganhou um monte de dinheiro. Mas não soube administrar. Não jogava, não bebia, só não sabia gerenciar o dinheiro. Comprou cinco carros. Para quê? Comprou uma chácara com animais sem entender nada disso – e os bichos morriam.”
ATAQUE AO PAI
Foi tentar andar com as próprias pernas em Porto Alegre. Na capital gaúcha trabalhou como garçom (apesar de ter prometido a si mesmo não trabalhar mais com isso, para poder ter os fins de semana livres). Até tentou ficar atrás de uma mesa como estagiário de RH em uma rede de materiais de construção, mas não aguentou um mês na função.
“Eu gostava de ver gente, de conversar, de atender, falar de comida, gastronomia… E lá fui eu trabalhar como garçom no hotel Embaixador. Me matava de trabalhar de dia (o café abria às 5h da manhã) e estudava de noite. Não tinha sábado, não tinha domingo…”
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Um dia, viu num anúncio que estavam contratando muita gente para trabalhar com comida. “Fiquei curioso e fui lá. Ficava numa rua em Canoas sem asfalto, um lugar longe… Era a Puras, que já fazia 5.000 refeições para indústrias no Rio Grande do Sul. Falei tudo o que eu sabia fazer para a recrutadora. Inventaram um cargo para mim – instrutor técnico de cozinha – e perguntaram quanto eu queria ganhar. Pedi 1.800 dinheiros da época e fui contratado (se tivesse pedido o dobro, acho que eles pagavam).”
De novo, começou a conquistar a admiração dos patrões e o ódio dos colegas. Revirava o lixo para reclamar de desperdício, criticava a decoração dos ambientes e dos pratos… “Para se livrar de mim, o diretor de operações foi até o dono e começou a dizer que eu era bem apresentado, sabia falar bem, era entusiasmado, tinha carro, não sei que mais… ‘Por que você não coloca ele na área comercial?’, falou o tal diretor. Eu nunca tinha vendido nada na vida, mas o patrão caiu na conversa.”
No primeiro cliente, o primeiro sufoco. “Ele fez um monte de perguntas que eu não sabia responder. Mas tive a lucidez de falar a coisa certa: ‘Olha, não sei te responder agora, prefiro não falar bobagem. Vou até a empresa, pego todas as respostas e volto para esclarecer suas dúvidas.’” E assim fez. “Ele ficou encantado com essa atitude. Não fechou contrato, mas aquilo me serviu de lição. Acabei virando o grande vendedor da região.”
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Aos 30 anos de idade, achou que já tinha cacife e conhecimento suficientes para abrir o próprio negócio de alimentação. Vendeu seu carro (um Gol GTI), pegou o dinheiro da rescisão da Puras (que ele calcula em US$ 10 mil), comprou móveis em um leilão, alugou uma casinha velha… E lá montou a Sapore.
Como era de esperar, cresceu a olhos vistos. Sentia-se invencível, até que a crise mundial de 2008 o atingiu em cheio. Por muito pouco não fechou as portas. “Me senti injustiçado, maltratado pela vida. Mas reverter essa quase quebra nos deixou muito fortes. Se não fosse isso, na crise atual não sei o que seria de nós”, avalia.
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