Os protestos que ocorreram nos EUA e no mundo todo obrigaram os governos, as empresas e as nossas comunidades a olharem novamente para como o racismo sistêmico afeta as sociedades de hoje. No caso do bourbon, o uísque americano, foi apenas nos últimos anos que os laços históricos do produto com o comércio de escravos foram examinados mais a fundo.
A professora doutora e ativista Erin Wiggins Gilliam, da Kentucky State University, tem pesquisado esses elos. Sediada no meio do “Bourbon Country”, ela é uma das principais especialistas em história da escravidão na indústria da bebida.
Na entrevista a seguir, ela fala não apenas sobre os laços históricos do bourbon com a escravidão, mas como essa história também torna as comunidades negras americanas stakeholders do futuro dessa indústria.
Forbes: Como você começou sua pesquisa sobre os vínculos entre a indústria do bourbon e a escravidão?
Erin Wiggins Gilliam: A pesquisa do bourbon meio que caiu no meu colo. Para ser sincera, nem bebo essa bebida. Aprendi a gostar e apreciar a arte de fazê-la, mas me considero uma garota da tequila. Uma das empresas de bourbon na cidade de Frankfort fez parceria com a minha universidade para o festival Bourbon on the Banks, que comemora os diferentes tipos de bourbon do estado. Naqueles ano, eles queriam ter um segmento da contribuição afro-americana na indústria do bourbon, então, eu me envolvi.
Isso estava acontecendo quando a história de Nearest Green e o uísque Uncle Nearest estava ganhando popularidade (Nearest Green foi o escravo afro-americano que ensinou Jack Daniels a destilar uísque).
Olhando além disso, porém, tenho certeza de que a maioria das empresas de bourbon naquela época havia escravizado os afro-americanos trabalhando para eles, e eles não estavam apenas erguendo as cercas, limpando fotos e fazendo coisas estereotipadas assim. A pesquisa mostra que muitos, provavelmente eram destiladores, e eles foram um dos melhores de seu tempo, até inventando novas receitas.
Quando você vê a indústria do bourbon, geralmente não se vê algum reflexo do povo afro-americano, mas ajudamos a construir as bases da indústria, e por isso ela é também uma indústria afro-americana.
F: O que você descobriu quando estava vasculhando os arquivos dessas empresas de bourbon?
EWG: Infelizmente, não há muita documentação disponível sobre escravidão na indústria do bourbon. Essa, na verdade, é uma questão mais ampla quando se trabalha com histórias de comunidades negras, pessoas de cor ou grupos indígenas, pois não faz parte da história da “maioria”. E essas histórias de “minoria” eram frequentemente expressas em tradições orais.
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No entanto, algumas das destilarias me deram acesso aos seus arquivos e, a partir dos registros, você pode juntar algumas coisas. Você nunca iria achar registros escritos como, por exemplo, “Bob Michaels, destilador negro”, mas o documento diria que ele trabalhou em uma destilaria.
Mas eu encontrei um documento feito para um africano escravizado que trabalhava com um historiador local, Gary Gardner. Ele estava em Hodgenville, Kentucky, na propriedade de Stephen Chastain e foi alugado para trabalhar em destilarias pela cidade. Seu custo médio de locação era maior do que um trabalhador branco, o que é realmente incomum. Se é mais caro alugar esse negro para trabalhar em sua destilaria, isso dá uma a ideia de que, se você estiver pagando US$ 114 por este escravo, ele estará fazendo mais do que apenas limpar os campos e arrumar o trigo. Ele provavelmente é a chave do processo de destilação.
Se uma destilaria existiu durante o período de escravização do povo afro-americano em Kentucky e na área do Bourbon, estou disposta a apostar que os afro-americanos eram frequentemente explorados por essas instituições.
F: Quais foram alguns dos maiores destaques para você em sua pesquisa?
EWG: Durante janeiro e fevereiro, antes da pandemia do coronavírus, muitas empresas de bourbon me pediram para discursar durante o Mês da História Negra, e eu conheci algumas pessoas que estavam dispostas a sentar e me contar a história de sua família. Por exemplo, eu estava dando uma palestra sobre história negra quando conheci a primeira mulher negra química em Louisville, Kentucky, Elmer Lucille Allen. Ela trabalhou para a Brown Forman nos anos 1980. Quando eu terminei de falar e saí do palco, ela me deu um grande abraço e disse que estava muito orgulhosa de mim por espalhar a história em seu lugar de origem. Esse foi provavelmente o meu melhor momento.
Também conversei com pessoas que tinham uma família que trabalhava na Jim Beam por 40 anos e também na Sazerac. Essas são as histórias que realmente estou tentando entender. O que não quero que aconteça é que os negros americanos comecem a pensar “não tínhamos nada a ver com a indústria de bourbon”. Fazemos parte dessa história. Nós éramos até destiladores.
Somos uma parte importante do bourbon, que é uma indústria multibilionária. Historicamente, estávamos lá e precisamos garantir que os afro-americanos reivindiquem sua participação econômica na indústria do bourbon hoje.
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F: Você poderia elaborar melhor o que significa essa ideia de “participação econômica”?
EWG: Existe essa ideia que surgiu entre nas décadas de 1980 e 1990 de que os negros não bebem bourbon, que eles bebem vodca. Até li em algum lugar que um supremacista branco tinha dito uma vez que os negros não tinham um paladar desenvolvido o suficiente para entender o bourbon. Obviamente, sabemos que isso não é verdade, uma vez que alguns dos primeiros destiladores de bourbon e uísque eram pretos.
Atualmente, a indústria do bourbon evoluiu, definitivamente. E hoje eles percebem que os afro-americanos são seus consumidores. Eu acho que eles poderiam trabalhar com seu marketing, refletindo os negros como consumidores de bourbon, também. E, mais importante, acho que eles também podem refletir como os negros contribuíram como fornecedores, como seus funcionários e como fornecedores de seus agricultores.
Eu acho que existe um esforço genuíno para ter mais conversas sobre raça e sobre a contribuição afro-americana para na indústria de bourbon. Há também esse aumento de sindicatos, como o Black Bourbon Society. Sou um membro de uma dessas guildas em minha cidade, a Kentucky Black Bourbon Guild. Eles ajudaram a estabelecer um programa de destilação na universidade onde trabalho, uma escola historicamente negra, para que, assim, estudantes negros possam aprender sobre destilação, fermentação e sobre a indústria de bourbon em geral. Isso significa que eles podem ter carreiras na indústria de bourbon e até estão conseguindo estágios em empresas como Buffalo Trace, Jim Beam e Wild Turkey, gigantes dessa indústria. É assim que o processo significativo de mudança começa.
F: Quais empresas de bourbon fizeram um bom trabalho em confrontar e serem honestas sobre sua história com a escravidão?
EWG: A Jim Beam tem sido extremamente aberta. A Buffalo Trace foi extremamente aberta, também. E isso não quer dizer que outras empresas também não foram boas nisso, mas apenas não tiveram ainda a oportunidade de pesquisar mais. Eu adoraria poder procurar mais arquivos sobre elas.
Como historiadora, ativista e negra nos Estados Unidos, acho que ter conversas sobre o bourbon é muito legal, mas o mais importante é que quero que isso seja sobre raça. Quero que faça parte de uma conversa mais ampla, usando a indústria de bourbon como um canal, apenas. Pois esse setor industrial não deveria ser um domínio completamente branco. Se quisermos fazer uma jornada em direção a uma sociedade pós-racial, os americanos brancos terão de estar dispostos a ter uma conversa, uma conversa desconfortável que provavelmente vinculará seu passado à escravidão e ao estabelecimento da supremacia branca e do racismo sistêmico.
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