A evolução da boa mesa: privilégio de muitos

22 de maio de 2018
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Ter uma sala de jantar era objeto de desejo também das classes mais baixas e emergentes

O melhor paladar, agregado ao prazer de se reunir com pessoas queridas, foi, por longo tempo, privilégio de poucos. Na Antiguidade, imperadores e poderosos romanos recebiam os convidados não só com fartura, mas também apresentavam dançarinos, acrobatas e lutadores – transformando os jantares em um verdadeiro show. Até o fim da era moderna, nem o Renascimento, nem a globalização promovida pelas grandes navegações foram capazes de democratizar a arte de bem receber. Foi só nos primeiros anos de 1800, após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, na Inglaterra, que começamos a humanizar a boa mesa e a estabelecer a gastronomia como um assunto “sério”.

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Com o levante francês, muitos chefs perderam seus empregos na nobreza e migraram para a nova burguesia. É aí que surge um prodígio que se tornaria ícone maior da culinária: Marie-Antoine Carême. Abandonado pelos pais, ele cresceu apaixonado por cozinha. Onde passava fazia sucesso. Aos 24 anos, abriu sua pâtisserie na Rue de La Paix. As diferentes composições estruturadas do mestre ganhavam atenção dos parisienses. Em cada recepção que assinava, Carême se inspirava na história e na arquitetura e valorizava o sabor dos ingredientes, buscando soluções até na química. Foi ele quem estabeleceu a unidade entre comida, ambientação e serviço. Apresentou o suflê, o molho bechamel, o merengue e a massa folhada. Seu foco era criar cenários e receitas para a sociedade pós-realeza, mas se tornou referência para todos. Primeiro chef celebridade do mundo, Carême cozinhou para Napoleão e, em 1815, mudou-se para Londres, contratado pelo rei George IV. Da cozinha dos czares importou o serviço à russa, baseado no ritual de etapas do cardápio impresso, e não tudo disponível à mesa, como era o padrão europeu. Escreveu, em 1834, um dos tratados gourmet mais importantes da história: L’Art de La Cuisine Française, uma série de cinco livros. Essa nova literatura ganhou espaço nas prateleiras e deu origem a outros chefs autores, como A. Viard, Georges Escoffier (mestre da gastronomia hoteleira) e Louis Audot, que influenciou até a tradicional culinária italiana – nesse período, a Itália se unificou e celebrou sua identidade gastronômica com base nas receitas do norte dos Alpes, que por sua vez abalariam Paris. Já na Inglaterra, o sabor era outro: o fascínio de seus nobres pela comida francesa e os sintomas da Revolução Industrial – como a urbanização, as duras jornadas de trabalho e o desinteresse pela agricultura – não estimularam a cultura gastronômica britânica na era vitoriana.

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Ilustração de Marie-Antoine Carême (1784-1833)

Outros passos dignos de registro foram a evolução das tabernas em restaurantes e a chegada do gás à cozinha. “O restaurante iria mudar a maneira como as pessoas percebiam a comida. Quem jamais havia pensado nela mais seriamente tomou consciência da arte de cozinhar. Ao lerem um cardápio, surpreendiam-se com a possibilidade de um mesmo ingrediente ser saboreado de tantas maneiras diferentes”, cita o escritor inglês Roy Strong, autor do livro Banquete, que esmiúça a história da culinária. Surgem assim os gourmands e seus primeiros influenciadores, como Alexandre-Balthazar-Laurent Grimod de la Reynière, o primeiro crítico gastronômico. Até a primeira metade do século 19, os restaurantes eram um fenômeno especificamente parisiense. Depois, tomariam conta do mundo.

Mas a grande vitória da gastronomia aconteceria dentro das casas. Ter uma sala de jantar era objeto de desejo também das classes mais baixas e emergentes, tanto na Europa como na América. Receber convidados para comer passou a representar poder e atitude. “Comer deixaria de ser um ato migratório dentro dos lares para ter um lugar específico”, conta Strong.

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No começo do século 20, surgem os primeiros refrigeradores. Aquecer e resfriar (conservar) alimentos entram na lista dos avanços tecnológicos. Depois disso, o homem conheceu o fast-food, assistiu na TV a jantares e festas entre artistas (como se fossem os seletos encontros dos nobres de séculos atrás) e começou a pedir comida de várias origens pelo telefone. Nada disso, no entanto, apagou o encanto que é ter o talento de um chef em um bom restaurante ou em uma recepção de amigos. Graças a Carême e seus brilhantes seguidores.

Coluna publicada na edição 58, lançada em abril de 2018