
O mundo lúdico de Luiz Filipe Souza tem nome e endereço. É no Evvai, em um sobrado da Rua Joaquim Antunes, em Pinheiros (SP), que o chef deixa sua criatividade brilhar para desenhar uma das experiências gastronômicas mais memoráveis (e estreladas) da cidade, com pratos como um indulgente affogato salgado com sorvete de cogumelos e uma sobremesa de couve-flor e coco. Sem medo de pensar fora da caixa, foi esse trabalho ousado do paulistano que lhe rendeu em 2024 sua segunda estrela Michelin, feito para pouquíssimos brasileiros – um seleto grupo de seis restaurantes.
O peso do título ironicamente deixou Luiz mais leve. “A segunda estrela nos coloca em um lugar menos questionável sobre a capacidade e a qualidade do trabalho no Evvai”, justificou o chef, que tem fama de ser perfeccionista e exigente. “Eu sempre precisava estar me provando, e a segunda estrela tirou esse peso. Foi uma constatação da nossa evolução.”
“Me achava um super-homem”
O paulistano é um jovem prodígio especialista na arte de se aprimorar. Depois de largar o diploma de administração e não topar o emprego em um banco para seguir a paixão pela cozinha, Luiz se jogou de corpo e alma atrás do sucesso: foi discípulo de Salvatore Loi, no Fasano; passou um tempo em Nova York e na Itália; e foi finalista do Bocuse D’Or, competição de cozinheiros conhecida como a Copa do Mundo da Gastronomia. Em 2017, aos 28 anos, ele abriu o Evvai, seu restaurante ítalo-brasileiro de comida autoral. No ano seguinte, virou destaque da categoria Gastronomia do Forbes Under 30. A primeira estrela do guia francês viria logo depois, em maio de 2019.
Agora, aos 36, ele chega à sua melhor fase, com a consciência de estar mais maduro. “Com 20 e poucos anos, eu não tinha medo de nada, trabalhava sem folga, me achava o Super-Homem, capaz de fazer tudo”, lembra ele de um momento de vida nada saudável. “Hoje, estou em uma fase mais tranquila, tentando trabalhar de maneira mais inteligente, respeitando mais o tempo das coisas. Com menos ansiedade.”
Isso só não quer dizer menos trabalho (e desafios). Luiz segue firme no Evvai todos os dias. Ao mesmo tempo, toca dois novos negócios: a Trattorita, cantina italiana mais casual, aberta em janeiro na mesma rua do primogênito; e o Y (lê-se “i”), restaurante de comida brasileira inaugurado em meados de 2024 a convite da Belmond, no cinco estrelas Hotel das Cataratas – por isso, em sua agenda, as viagens a Foz do Iguaçu são mensais, para que o paulistano exerça sua cozinha criativa com ingredientes brasileiríssimos e dê o toque de chef em clássicos regionais, como a chipa, o pastel e a coxinha.
O status alçado pelo Michelin e por ser o número 20 na lista do Latin America’s 50 Best o colocaram em uma rotina puxada de viagens para fora do Brasil. Só em julho, o paulistano passou cada semana em um país diferente, cozinhando ao lado de nomes internacionais. Entre as escalas, já foi para Montreal, Guatemala e, mais recentemente, passou uma temporada de três semanas cozinhando na Califórnia, na pop-up do premiado Ritual at Manresa. “É uma agenda dura, mas o momento é oportuno. É importante para divulgar nossa cozinha brasileira”, reconhece.

Luiz monta um dos pratos mais ousados do menu do Evvai: tartar de carne com granita de ostra e beterraba assada em nibs de cacau
Para dar conta de tudo, o chef aprendeu com a idade e sete anos intensos de Evvai (junto a uma pandemia) a valorizar o autocuidado. “Comecei a ter mais disciplina, especialmente para ter mais momentos para mim.” Entre as atividades favoritas está o tênis. “Joguei dos 3 aos 16 anos e só voltei na pandemia. Agora não consigo mais parar”, diz ele, que tenta praticar o esporte todos os dias antes de vestir a dólmã.
Momento de curtir
Os sonhos inimagináveis de um jovem Luiz são hoje a realidade do chef, que confessa não saber quais são as suas próximas metas. “Agora não é a hora de pensar nisso – o momento é de curtir. Não consegui parar ainda para contemplar a segunda estrela. O próximo plano é tirar férias para a Disney e não pensar em nada, só desfrutar”, conta, entre risadas. A agenda tão dura só o permitiu concretizar esse plano quase um ano depois da conquista, em março de 2025.
E a terceira estrela Michelin? Fora de cogitação por enquanto, ele rapidamente rebate. “Ela envolve outro tipo de comprometimento de trabalho. Não sei se tenho essa maturidade. É algo para um Luiz muito mais sênior; ele teria que perder essa parte jovem que ainda habita aqui dentro.”
Antes preso a receitas e a dogmas de terceiros, foi a liberdade do Evvai que permitiu a Luiz criar sua própria linguagem culinária, com DNA inconfundível. “Sou muito orgulhoso de termos uma voz própria tão forte”, diz ele sobre o primeiro filho, baseado na filosofia “Oriundi”: uma referência aos imigrantes e descendentes italianos ao redor do mundo. Com o passar dos anos, a Itália deixou de reinar sobre o Brasil em sua cozinha. Hoje, ambas as culturas andam de mãos dadas no menu. “As duas exercem forças sobre meu processo criativo, em uma relação nada imperativa. Ora é produto brasileiro com técnica italiana, ora cultura brasileira com insumo italiano, tudo sem ser óbvio.”
Desse intercâmbio saem as mais curiosas – e deliciosas – combinações. No histórico do menu degustação, que o chef gosta de trocar a cada quatro meses, em média, pratos como o acarajé aparecem em formato de uma delicada merengata, enquanto um tartar de curraleiro pé-duro (nosso “wagyu nacional”) é acompanhado por granita de ostra, feita com nitrogênio, por exemplo. Até o que poderia ser uma simples salada se transforma em uma explosão de texturas com caqui, marshmallow de abóbora e um vinagrete de gin. No cardápio atual, criações como bacalhau com tucupi e picolé de milho com caviar. “Gosto de brincar com texturas e temperaturas. Isso intriga e briga com o celular pela atenção do cliente, já que o foco deve ser na comida.”
Na hora de criar, a regra, das poucas dentro do mundo lúdico de possibilidades do Evvai, é clara: é preciso ser gostoso. “Por algum tempo, tentamos forçar a barra com ideias muito boas em termos de enredo, storytelling, mas que não eram tão boas assim. Era falta de maturidade. Comecei a entender que nada supera o sabor.”
Ainda assim, sua veia artística não deixa de aparecer – tanto na estética impecável dos pratos, com seus mínimos detalhes de flores, cores e adornos, quanto nos cartões-postais que acompanham e explicam cada etapa do menu, estampados com desenhos pop art que o próprio Luiz faz à mão. Ele lembra do avô nessas horas: “Ele sentava comigo e passava horas me ensinando a desenhar certas coisas. Esse universo lúdico sempre está presente para mim”.
Geração Evvai: do ego ao legado
Cercado por talentos que fazem o Evvai florescer, o paulistano pode não ter metas urgentes para si depois de conquistar tudo o que tem no currículo, mas sabe muito bem o que quer para os que estão ao seu redor. Seu sonho hoje em dia é ter um grupo de restaurantes. “Mas não para mim. Quero que os protagonistas sejam essa turma que trabalha comigo. Eu só daria o suporte. Ver o sucesso deles será o tipo de sucesso que me falta hoje, que paramos de falar do ego para tratar de legado.” Entre as apostas, os sous chefs André Miranda (que já cuida dos negócios no Trattorita e no Y) e Clara Pavão, além da chef de confeitaria Bianca Mirabili, que brilha nas sobremesas do Evvai.
Luiz parece satisfeito. Está mais saudável, maduro e criativo do que nunca, convicto de sua identidade como chef. Da fusão entre Brasil e Itália, agora tem o melhor dos dois mundos: um fine dining ítalo-brasileiro estrelado, uma trattoria italianíssima de comfort food e um restaurante no meio da natureza das Cataratas, onde faz releituras de clássicos da cozinha brasileira – como moqueca, feijoada e pastel com caldo de cana. “Me sinto supercompleto, e estou empenhado por mais três décadas, pelo menos, de bom trabalho.” Que assim seja.