Gráfica de 168 anos irá converter notas de papel em criptomoeda para bancos centrais

27 de agosto de 2020
Getty Images

Gráfica fez seu primeiro investimento em blockchain, liderando uma série A de US$ 17 milhões

Se alguma vez houve uma empresa com nuvens escuras no horizonte, ela deveria estar imprimindo papel-moeda, também conhecido como notas bancárias. Nos Estados Unidos, a produção de notas fica a cargo do Departamento de Gravura e Impressão do Tesouro, mas para grande parte do resto do mundo –da Armênia e Peru à Tailândia e Suazilândia– o dinheiro é impresso por várias empresas, notadamente a alemã Giesecke & Devrient (G&D).

No mês passado, a gráfica de 168 anos fez seu primeiro investimento em blockchain, liderando uma série A de US$ 17 milhões na Metaco, uma startup suíça que fornece serviços de custódia para bitcoin e stablecoins, um novo tipo de criptomoeda alimentado por blockchain, mas apoiada por moedas fiduciárias, como o dólar americano. Além disso, como um complemento perfeito, a empresa lançou, em 2019, um novo software chamado Filia, que permite aos bancos centrais usarem a tecnologia de contabilidade distribuída para emitir versões digitais de sua própria moeda.

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Novas formas de pagamentos

Já são seis bancos centrais clientes da G&D que estão em negociações sobre o uso do Filia para criar sua própria moeda digital de banco central (CBDC), enquanto a China se prepara para ser a primeira nação a lançar sua própria moeda baseada em blockchain. Segundo o CEO, Ralf Wintergerst, o negócio de criação de dinheiro está à beira de uma revolução tecnológica que mescla o melhor do mundo físico com o melhor do virtual.

A Giesecke & Devrient ainda tem suas raízes no negócio de papel-moeda, mas seria difícil encontrar um defensor mais entusiasta dos pagamentos digitais. A pandemia da Covid-19 –e o risco inerente ao manuseio do papel– acelerou as tendências de evitar a utilização de dinheiro em países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Aplicativos de pagamento, como Venmo, Zelle e Square’s Cash App, viram um aumento em seu uso. A Zelle, por exemplo, presenciou o volume de transações aumentar em 63% no primeiro semestre de 2020, para mais de US$ 133 bilhões.

“A existência de várias formas de pagamento faz sentido do ponto de vista geral”, diz Wintergerst, referindo-se ao fato de que a necessidade de papel-moeda resistente à prova de falsificação continua presente, apesar do aumento dos pagamentos eletrônicos. Atualmente, ainda há US$ 8 trilhões em dinheiro em circulação –um valor que cresce de 3% a 5% ao ano– e mais da metade de todas as transações de pagamento no planeta ocorrem com papel-moeda.

Em 2019, 46% da receita de US$ 2,9 bilhões da G&D vieram de sua divisão de tecnologia de moeda, que inclui seus serviços de design e impressão de notas, além de empregar 4.800 pessoas e trabalhar com 145 dos 195 bancos centrais do mundo. Embora a expansão da G&D em serviços digitais –incluindo segurança móvel na forma de eSims usados nos iPhones– esteja mais rápida, a divisão que inclui impressão de papel-moeda cresceu 7% no ano passado.

História e pioneirismo

A empresa alemã é conhecida por inovar em suas notas. Quando a Armênia estava procurando substituir suas notas de mil a 100 mil drams após 20 anos, a G&D usou um novo substrato de poliéster e papel para que a moeda fosse de duas a três vezes mais durável do que o dinheiro antigo. Ainda, além das marcas d’água e tiras magnéticas encontradas na maioria das notas de papel, a empresa começou a oferecer os chamados “recursos de segurança secreta”, incluindo código impresso no papel com um laser que só pode ser lido com sensores sob luz infravermelha e fluorescentes ultravioleta.

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No final de 2018, apenas cerca de 11% das notas bancárias do mundo eram feitas em gráficas privadas. A G&D é a segunda maior impressora de dinheiro, com 23% de participação de mercado, logo atrás da problemática De La Rue da Grã-Bretanha, que tem 27% de participação. Depois de uma série de problemas, incluindo dívidas não pagas pela Venezuela, perda do contrato de passaporte britânico para uma gráfica francesa e mudança na gestão, a rival De La Rue suspendeu recentemente seus dividendos e anunciou que poderia não continuar.

A G&D foi fundada em Leipzig em 1852 por dois jovens artesãos empreendedores, Hermann Giesecke, de 21 anos, e Alphonse Devrient, de 31 anos. Naquele ano, as gráficas ganharam seu primeiro contrato importante com o Banco de Weimar, no Grão-Ducado de Saxe-Weimar-Eisenach, para produzir a nota de 10-thaler (a palavra “dólar” é derivada de thaler). De um lado da nota, estava a Deusa da Fortuna de Saxe-Weimar-Eisenach alinhada entre o escrito “10” e cercada de todos os lados por marcas d’água. Em ambos os lados da deusa, havia gravuras em guilhoché de espirais fractais esculpidas em um torno e impossíveis de serem replicadas por qualquer mão. Os jovens ficaram conhecidos por seus designs sofisticados.

Ao longo dos anos, a G&D participou dos bastidores da história monetária. Depois da Primeira Guerra Mundial, a empresa foi uma das principais gráficas da República de Weimar. Em 1936, ela imprimiu ingressos para os Jogos Olímpicos de Berlim para a Alemanha de Hitler. Mais tarde, produziu notas de banco para o regime de Franco, na Espanha. Após a guerra, os soviéticos desapropriaram a maioria das operações de G&D que não haviam sido destruídas, mas o genro do então presidente voltou de um campo de prisioneiros de guerra russo e reformou o negócio em 1948, em Munique. Em uma década, a empresa estava imprimindo metade das notas do Bundesbank e havia se expandido para o exterior. A G&D foi a impressora do governo corrupto de Mugabe, no Zimbábue, desde os anos 1960. Em julho de 2008, ela foi forçada pelo governo alemão a parar de enviar notas para o banco central do Zimbábue, que viu a inflação ultrapassar 1.000.000%.

Mistura de técnicas do velho mundo e tecnologia de ponta

Atualmente, a G&D tem mais de 80 subsidiárias em cinco continentes e operações de impressão de última geração na Alemanha e na Malásia. Ela projeta cédulas especializadas seguras e à prova de fraude e até ajuda a destruí-las. Embora alguns bancos centrais também possuam suas próprias impressoras, a G&D aceita pedidos especiais para denominações de alta demanda, imprime-os sob encomenda com uma ampla gama de recursos de segurança e os envia mediante solicitação. Embora os pedidos de moeda real possam ser esporádicos, os dispositivos de segurança da G&D para digitalização de dinheiro em nome de governos, incluindo os EUA e cassinos, oferecem receita recorrente. A esperança é que, se a G&D puder ajudar bancos centrais menores a desenvolver suas próprias moedas digitais com base na tecnologia de contabilidade distribuída, bem como serviços de custódia por meio do Metaco, ela poderá criar um modelo de receita conforme o mundo se torna digital.

Ralf Wintergerst, CEO da Giesecke & Devrient

Em julho de 2017, enquanto o bitcoin estava a caminho de US$ 20 mil e o boom da criptografia ICO estava se aproximando do pico, a G&D tornou seu interesse em moeda digital conhecido quando lançou seu whitepaper chamado “Digital Money”. O relatório de 35 páginas encorajou os clientes do banco central a adotarem alternativas eletrônicas para seu próprio negócio centenário de cédulas bancárias: “Uma moeda digital seria atraente para os bancos centrais, pois permitiria apoiar os cidadãos na jornada da digitalização”, disse o relatório. A G&D antecipou que muitos bancos centrais se sentiriam oprimidos pelo rápido aumento de moedas digitais alternativas, incluindo a conversa sobre a moeda libra, do Facebook. Eles queriam manter o controle de seu suprimento de dinheiro, mas não tinham o conhecimento técnico ou os recursos para competir nessa área.

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Então, no ano passado, a G&D revelou seu primeiro produto de software voltado para a fusão dos dois mundos: a G&D Filia. Na edição de outono do boletim do Fórum Oficial de Instituições Monetárias e Financeiras, o chefe global de tecnologia de moeda da G&D, Christian Jüttner, posicionou a G&D Filia como um “complemento ao dinheiro”, um arquivo de dados independente de plataforma que poderia ser cunhado por bancos centrais e distribuído por meio de bancos comerciais ou outras instituições financeiras, para uso em smartphones, smartwatches e outras carteiras digitais. Embora a G&D não dê detalhes sobre seu novo software, suas “moedas” provavelmente serão criadas com um algoritmo e serão controladas por cada banco central, que manterá o arquivo de dados. Esse novo tipo de moeda não exigiria uma conta para usar e seria de código aberto para que os provedores de serviços de pagamento pudessem integrar suas ofertas diretamente nele.

Em seus documentos de apresentação, a G&D deixou em aberta a possibilidade de que a nova geração de moedas digitais do banco central (CBDCs) pudesse eliminar totalmente a necessidade de intermediários de bancos comerciais, já que a moeda poderia ser emitida diretamente, em vez de por meio de uma instituição. Os cidadãos e outras pessoas, portanto, manteriam uma conta diretamente no banco central de seu país. Moedas digitais emitidas diretamente contribuiriam para “bancar os sem-banco” porque tudo o que seria necessário para ter acesso seria um smartphone. Dispersar o alívio do estímulo durante uma crise, por exemplo, pode ser tão fácil quanto enviar um e-mail.

Marcos de combate à falsificação de moedas

Desde que moedas falsas representando a deusa Atenas começaram a aparecer em Roma em 350 a.C., a falsificação tem atormentado os emissores de moeda. Abaixo estão alguns marcos históricos. Novas moedas digitais usando a tecnologia blockchain podem ser um fator de mudança.

  • Século 7 a.C.: as moedas são criadas a partir de matrizes gravadas com um desenho ao contrário.
  • Final do século 2 a.C.: os romanos usam bordas serrilhadas no denário, sua moeda de prata padrão.
  • Século 15: Johannes Gutenberg inventa a máquina de impressão, à princípio
    usada para papel-moeda.
  • Final do século 15: os laminadores de aço criam chapas de metal de espessura uniforme.
  • Meados do século 18: Ben Franklin desenvolve impressões da natureza, em que os padrões nas folhas são usados ​​como impressões digitais.
  • 1815: Jacob Perkins introduz os padrões complexos de gravação de forma geométrica.
  • 1988: a Austrália apresenta as cédulas de polímero.
  • 2008: Satoshi Nakamoto publica o whitepaper bitcoin, descrevendo uma maneira de provar a autenticidade sem precisar de um terceiro.
  • 2019: G&D lança Filia, tornando-se a primeira impressora privada de dinheiro a oferecer software para bancos centrais emitirem moedas digitais.

“É muito difícil transferir dinheiro para as pessoas quando elas não têm conta bancária, mas talvez elas tenham um celular”, diz Wintergerst. “A oferta do banco central não forneceria apenas dinheiro físico, mas também dinheiro digital.” Wintergerst observa que o nome do novo software de moeda digital da G&D, Filia, é latino. “É a afiliada do banco central”, diz ele.

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Embora Amazon Pay, Google Pay, Alipay e Facebook tenham reconhecido a oportunidade de criar uma rede de pagamentos sem fronteiras, todos eles exigem contas para acessar e, como entidades com fins lucrativos, têm modelos de negócios que podem estar em desacordo com o valor real da criação de moeda.

“A moeda digital do banco central é um bem público”, disse o chefe de tecnologia monetária da G&D, Wolfram Seidemann, em um jornal. “É universalmente aceito, livre de barreiras sociais e econômicas e pode ser usado independentemente do emissor, tornando-se um instrumento democrático e livre. Para ser amplamente aceito, o CBDC deve ser anônimo para o usuário honesto.”

Mas Wintergerst explica que o dinheiro emitido por um banco central teria certos recursos incorporados que suas notas ou mesmo pagamentos via Zelle nunca poderiam oferecer: “Você poderia dizer que até US$ 1.000, por exemplo, não é rastreável, é anônimo”, diz ele. “Mas acima desse valor, você precisa colocar seu nome por trás disso, por exemplo, porque você pode criar gatilhos ou limites para valores diferentes e para finalidades diferentes”. O outro lado disso é que o CBDC poderia ser codificado para rastrear todas as transações, essencialmente apagando a privacidade.

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Outro fator que impactará a produção é o custo. O bitcoin é caro do ponto de vista da energia, custando entre US$ 5 mil e US$ 8.500 para minerar um único bitcoin, de acordo com uma estimativa recente. A G&D, por outro lado, cobra entre US$ 30 e US$ 250 para projetar, produzir e enviar mil notas, dependendo dos recursos de segurança que, por sua vez, dependem do valor da cédula. O Federal Reserve, dos Estados Unidos, que imprime suas próprias notas, diz que paga cerca de US$ 0,077 por dólar até US$ 0,196 por uma nota de US$ 100. Quanto custará para criar as moedas digitais do banco central? Wintergerst não diz ao certo, mas aponta que com certeza será mais barato que bitcoin. “Dê-me um ou dois anos e talvez eu possa falar”, afirma ele.

Ao desenvolver a Filia com uma equipe de programadores e economistas internos, a G&D descobriu a Metaco, com sede na Suíça, que vende um sistema operacional institucional que permite às instituições financeiras custodiar criptomoedas, tokens e stablecoins. O software da Metaco, chamado Silo, é uma interface de usuário entre os operadores humanos em bancos comerciais e os blockchains ou outros livro razão distribuídos que alimentam as criptomoedas das quais atua como custodiante. Até o momento, 75% dos negócios da Metaco vêm de bancos, principalmente da Europa.

Em julho, a G&D atacou a Metaco. A rodada de investimentos de US$ 17 milhões que liderou foi o dobro do que a startup suíça inicialmente pretendia levantar. “Podemos fornecer a eles acesso aos bancos centrais”, diz Wintergerst. “Porque, quando os bancos centrais optam mais por formas digitais de moeda, eles precisam de um ambiente de custódia.”

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