Já passa das sete horas da noite, e o sol ainda esquenta o rosto do madrilenho que estava mais entocado em casa, refém de duas semanas de céu nublado e frio. Agora, o poente desenha um mar de sombras humanas esticadas nas calçadas cheias, pessoas falando pelos cotovelos, trocas de olhares, a gente se acostumando a ver faces completas, e não só uma parte.
Domingo ensolarado, restaurantes cheios, um 10 de abril para lá de especial, as primeiras procissões da Semana Santa – tão cultuada na Espanha – agitam a capital, coincidindo com uma atmosfera de esperança e felicidade de quem sobreviveu a uma pandemia. Madri está fervendo.
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A luz do fim do dia despeja um amarelo na rua de Alcalá e deixa ainda mais linda umas das fachadas do Four Seasons Hotel Madrid. Novinho em folha, inaugurado em setembro de 2020, após sete anos de restauração de sete prédios históricos do século 19, ao custo de 608 milhões de euros, e que logo ganhou destaque na hotelaria de luxo da Europa graças à arquitetura assinada pelo Estudio Lamela (empresa espanhola das mais reconhecidas no setor, com 68 anos de tradição) e ao design de interiores, sob os cuidados da BAMO, de São Francisco (EUA).
São 200 quartos e ambientes comuns que apresentam duas mil obras de artistas espanhóis e 3700 objetos selecionados dos 16 mil retirados do antigo prédio da companhia de seguros La Equitativa, edifício que funcionou como âncora do projeto de restauração. As colunas de mármore verde no lobby do hotel ornamentavam o hall de entrada do Banco Español de Crédito.
Com diária a 20 mil euros, a Royal Suite (400 metros quadrados) tem sala de estar montada no escritório particular do presidente do banco no início do século 20, lareira, sacada e uma banheira redonda cinematográfica.
Com três estrelas Michelin desde 2018, o andaluz Dani Garci, à frente do Dani Garcia Group, trouxe informalidade para o rooftop do Four Seasons – o restaurante Dani serve café, almoço e jantar, uma viagem na gastronomia espanhola em espaço projetado por Martin Brudnizki.
Já no térreo, em um lounge adjacente ao lobby, o El Patio ficou no espaço onde era o salão de operações do antigo banco: chás, champanhe e bolos da pâtisserie francesa sob a batuta do chef executivo de confeitaria Omar Mallen. A terceira opção no hotel atende pelo nome de Isa, em homenagem à rainha Isabel I de Castela. Trata-se de um gastrobar, com luz baixa e decoração com motes orientais: tapas espanholas com sabor asiático, harmonizadas com coquetéis autorais – e deliciosos – preparados pela francesa Sophie Larrouture.
O Spa de quatro andares e a piscina na cobertura fecham a lista de destaques do complexo que conta ainda com 22 residências particulares com serviços do Four Seasons e a Galería Canalejas (lojas como Cartier, Hermès, Saint Laurent, Valentino, Zegna, Rolex e Aquazurrua; um setor com mais de 20 marcas premium de cosméticos e perfumes, além de 13 restaurantes). “A abertura de novas lojas [no início de junho] em Canalejas colocou a cidade no mapa dos destinos de compras de luxo no mundo, ao lado de Paris, Londres e Milão”, comemora a diretora da Galeria, Isabel Antolín.
A localização do hotel é emblemática: ele é vizinho à praça Puerta del Sol, o quilômetro zero das seis estradas radiais da Espanha, o entroncamento de dez ruas onde os madrilenhos se reúnem para brindar o réveillon e comer 12 uvas nas 12 badaladas do relógio da torre da Casa de Correos, hoje prefeitura. Estar na esquina das ruas Sevilla e Alcalá – intersecção das fachadas do Four Seasons – também significa estar muito bem servido seja lá o lado que você sair para bater perna.
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À esquerda, a rua Mayor desagua na Catedral de La Almuneda, que fica frente a frente ao Palácio Real de Madri, construído a mando de Filipe V e concluído em 1751. Capital da Espanha desde 1561, tomando o posto de Toledo, Madri tem origem moura, e remonta aos idos de 850 quando o emir Muhammad I iniciou as obras de uma fortaleza às margens do rio Manzanares, em um local com abundância de água (a semente da palavra Madri está ligada ao termo “fonte”, em moçárabe).
O Palácio Real foi erguido na área desta fortaleza. No caminho para lá, sente-se a pulsação de Madri em uma sequência de cartões postais, como a Praça Mayor (com 377 janelas e 114 arcos); o Mercado de San Miguel (arquitetura de metal e vidro) e a Praça de la Villa (um dos principais núcleos da Madri medieval).
Já à direita, uma outra sucessão de postais leva ao Parque del Buen Retiro, que ano passado entrou para a lista do Patrimônio Mundial da Unesco. O primeiro pit stop é na Fonte de Cibele (ponto de encontro dos torcedores para celebrar as vitórias do Real Madrid, em meio ao Paseo del Padro, também com o selo de Patrimônio da Unesco) e a Porta de Alcalá (de 1778, uma das cinco portas reais antigas que davam acesso à capital).
A Porta de Felipe IV é a mais antiga (1690) que acessa as 15 mil árvores dos 125 hectares do Buen Retiro. Flanar aqui funciona como um excelente termômetro para entender o clima da cidade – e imagine como estava a temperatura no domingo sol que o madrilenho se esparramou também pelos parques. Filas para entrar nas exposições temporárias do Palácio de Velázquez e no Palácio de Cristal – e vários barquinhos a remo cruzando pra cá e pra lá o Grande Lago em frente monumento dedicado a Alfonso XII.
Uma das principais relíquias do Buen Retiro, porém, é bem mais discreta e segue viva há mais ou menos 400 anos: o cipreste que fica no Canteiro Francês, única árvore que não foi derrubada pelo exército de Napoleão já que servia de apoio para o canhão que mirava o Palácio Real (para quem gosta de abraçar árvore – como eu –, a má notícia é que existe uma cerca em volta do tronco, o que impede a troca de energia).
O tour a pé por esse parque pode ser combinado com a visita a um dos três museus mais famosos da Espanha: do Prado, Reina Sofia ou o Thyssen-Bornemisza, que está com uma excelente exibição temporária até 16 de outubro: American Art from the Thyssen Collection, ocupando as salas 46 a 55, no primeiro andar, com 140 pinturas (alguns destaques: Hotel Room (1931), de Edward Hopper; Woman in Bath (1963), de Roy Lichtensein; Reflection with Two Children (1965), de Lucian Freud).
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Lugares ideais para comprovar o alto astral que varre Madri são seus restaurantes, desde os clássicos até os mais modernos. O Lhardy, por exemplo, de 1839, é vizinho ao Four Seasons e tem orgulho da história longeva iniciada pelo francês, filho de suíços, Eugenio Huguenin.
Não menos disputadas são as mesas do Amazónico (rua Jorge Juan, 20), inaugurado em 2016, mesclando ótimas carnes (palmas para o Tbone de Black Angus, de um fornecedor norte-americano de Nebraska) com pratos da gastronomia japonesa e drinques autorais como o Amozonicolada (Rum Havana Selección de Maestros, abacaxi assado, canela, lima e creme de coco).
O bom momento da capital se reflete também nos espetáculos diários do Tablao Flamenco Villa Rosa (Praza de Santa Ana, 15), casa fundada em 1911. Impossível não se arrepiar com a força da música, embalada por palmas firmes e sapateado que toca a alma. Nas primeiras músicas, você aplaude; nas últimas, você já está vibrando aos berros, com a garganta entalada pela emoção. Show à parte são os painéis de azulejos com passagens históricas de Madri, touradas e cenas de flamenco. A tradição e a beleza do lugar levaram Pedro Almodóvar a escolhê-lo como cenário de Tacones Lejanos (De salto alto, 1991).
Na sequência, quase que naturalmente, você começa a se perder no bairro de Las Letras, e, em vez de tentar se achar, passa a entrar em restaurantes de tapas para provar presuntos, azeitonas, croquetes, anchovas, camarões, cogumelos, vinhos, histórias.
A mesma eletricidade conecta estabelecimentos com tamanhos e decoração totalmente diferentes. Se, por ventura, as horas escaparem e a noite passar em um piscar, vale lembrar que o nascer do sol observado do rooftop do Four Seasons é dessas imagens que você leva colada na mente e que volta a revê-la sempre que fecha os olhos.
MOSTEIRO E VINHEDOS PERTO DE MADRI
Agora, respira. E desacelera. Uma viagem de 188 quilômetros ao norte de Madri, por estradas que parecem um tapete e montanhas nevadas no horizonte, ajuda a girar a chave para o modo off. Às margens do rio Douro, está a Abadía Retuerta LeDomaine, um monastério fundado em 1146, em Sardón de Duero, por Sancho Ansúrez, neto do fundador de Valladolid. Os monges ficaram por ali até 1834. Desde 1931, é reconhecido pela Unesco como local de Interesse Cultural. Em 1988, passou para o controle do grupo farmacêutico suíço Novartis, responsável pelo restauro de quatro anos que começou em 2008.
Hoje, o lugar é um hotel de 27 quartos e três suítes. Ele funciona há 10 anos cercado por vinhedos que renderam a primeira safra em 1995. Cavalgadas, passeios de balão, aulas de ioga – exemplos de atividades que podem ser providenciadas de acordo com o seu interesse.
Ano passado, o hotel levou o Best Wine Tourism Experience, do International Wine Challenge, e a categoria Best Hotel for Remarkable Experiences, no LHW Membership Award, em uma lista da Leading Hotels of The World com mais de 400 destinos de luxo em 80 países. Integrou as indicações do New York Times de Destinos para visitar em 2018, mesmo ano que foi votado como Melhor Hotel da Espanha. Outro indicativo do nível do hotel é o fato de ele ter uma parceria com outro brinco da hotelaria europeia: São Lourenço do Barrocal, no Alentejo (Portugal) – o pacote prevê três noites na Abadía e duas no Barrocal.
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O lugar convida à contemplação logo no primeiro instante em que a construção de pedra ocre quase milenar aparece pequena na paisagem. A propriedade tem 700 hectares, dos quais 185 dedicados ao plantio de uvas divididos em 54 parcelas. Entre os principais rótulos, o Selección Especial 2018 (Tempranillo, Syrah e Cabernet Sauvignon). “É como se fosse uma foto da vinícola, ou melhor, como se bebêssemos a paisagem”, resume Enrique Valero, CEO da Abadía Retuerta LeDomaine. “Você tem que sentir algo especial em todas as atividades. Aos fins de semana, estamos sempre lotados, mas os hóspedes não ficam vendo muita gente durante a estadia. Não queremos crescer em relação à capacidade.”
Para degustar a propriedade com outros sentidos, é recomendável uma volta de bicicleta costurando trilhas e vinhedos. Satisfeito do pedal, hora de relaxar em grande estilo no premiado Santuario Wellness & Spa (em 2021, o hotel conquistou o Wellness Travel Award, na categoria Most Unique). Aberto em 2015, o Santuario oferece o Spa Sommelier, que combina vinhos da região com propriedades curativas da aromaterapia, baseado na medicina tradicional do Tibete e nos quatro elementos da natureza: vento, fogo, terra e ar.
Após provar três vinhos e sentir o aroma de três óleos, você escolhe suas preferências para aproveitar uma experiência feita sob medida – o tilintar em uma tigela tibetana é a senha para corpo e mente entrarem em um profundo estado de relaxamento. A partir daí, esqueça o relógio e entregue-se a uma maratona de massagens, saunas, piscina e banhos em duchas de lavanda – tudo com água de um poço a 120 metros de profundidade.
Com o corpo flutuando, pouse no Refectorio, montado no mesmo lugar onde os monges faziam as refeições há 800 anos: uma estrela no Michelin em 2014 e outra estrela verde em 2020 (conferida a estabelecimentos comprometidos com sustentabilidade), comandado pelo chef Marc Segarra. A degustação de 32 pratos do jantar é determinada pela época do ano e pelo frescor dos produtos dos parceiros locais. “Nosso cardápio é uma homenagem a nosso entorno”, resume Segarra na introdução de um pequeno livro ilustrado (e lindo) sobre os produtores de Castilla y León, região do noroeste espanhol.
Exemplos entre os fornecedores listados: Queserías del Tiétar (de La Adrada, em Ávila; queijos de cabra premiados entre os melhores do mundo), Granja La Llueza (de Espinosa de los Monteros, em Burgos; foie gras produzido com patos criados ao ar livre) e Espora Gourmet (em Soria; trufas negras). A harmonização com vinhos elaborada pelo sommelier Agustí Peris acessa uma lista de 400 rótulos dos principais produtores do mundo (os vinhos da Abadía ficam em La Cueva, que conserva 8.500 garrafas com as safras desde 1995 – faça questão de visitar esse espaço; bem como a vinícola, uma das mais inovadoras e tecnológicas na Europa, desenhada pelo francês Pascal Delbeck).
O dia seguinte de um jantar de horas (não sei exatamente quantas, já que fiz o que sugeri a você, e esqueci o relógio desde a ida ao Santuario…) é perfeito para caminhar dentro e fora da propriedade, em um desfile de obras de arte e ângulos seculares que remete à reflexão e à consciência de desfrutar de um lugar tão especial. Atividade que não envolve grandes doses de adrenalina, mas faz sentir o próprio coração. O simples ato de parar, respirar e ouvir um silêncio denso, enquanto se admira algo encantador.
* Reportagem publicada na edição 97, lançada em maio de 2022
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